Queer Lisboa ’25 | Drunken Noodles – Análise
Em 2019, Lucio Castro estreou “Fin de siglo”, consagrando-se como uma das vozes mais interessantes no panorama do cinema queer. Essa narrativa de histórias recontadas, tempos refluxos e esbatidos, arrebatou a crítica internacional e pôs o nome deste artista argentino no mapa. Desde então, os cinéfilos têm esperado o seguimento da sua obra, mas Castro nada mais estreou. Assim foi até 2025, quando o cineasta regressou com duas novidades. Aqui, no Queer Lisboa, “Drunken Noodles” aparece em competição, chegando à capital portuguesa já enaltecido com o prestígio de Cannes e a seleção para o Festival de Cinema de Nova Iorque.
De facto, estes “Drunken Noodles” desenrolam-se na Grande Maçã, chegando lá pela mão de Adnan, um jovem estudante de Artes Plásticas que conseguiu assegurar um estágio em galeria nova-iorquina. Lá passará o verão, entre o espaço de exposição e um apartamento emprestado pelo tio, entre os bordados eróticos de um artista seu conhecido e os devaneios noturnos, sempre na busca de saciar o desejo ou quiçá a fome por uma qualquer intimidade. Dividindo-se em quatro capítulos, cada qual assinalado por um novo bordado em jeito de “title screen” têxtil, o filme de Lucio Castro caminha em sentido oposto ao típico correr do tempo e da ordem narrativa.
Não podia ser de outra forma. Afinal, por muito que “Drunken Noodles” se assemelhe a tantos outros estudos de solidão urbana, centrando-se num belo protagonista em constante troca de parceiros sexuais e epítetos hedonistas, as suas ambições são muito maiores e mais difíceis de explicar. Tanto assim é que o apelo aos clichés típicos do cinema independente queer me parece mais deliberado que acidental ou o produto de alguém apegado às tendências da sua indústria. Atrevo-me a dizer que Castro apela aos modelos comuns para confrontar as críticas que lhes são normalmente aplicadas.
Mas, antes de me atrever a tais retóricas, convém dar mais contexto ao leitor. “Drunken Noodles” recebe o espectador num registo classicista, enquadrando-se na proporção académica do 4:3, num digital que pisca o olho às qualidades estéticas do celuloide, e uma banda-sonora rica em rapsódias pianistas que recordam uma infinidade de contos nova-iorquinos do grande ecrã. Um momento vespertino, vê Adnan numa contemplação melancólica, seus olhos prendendo-se aos corpos masculinos que passam em frente à janela. A rotina faz-se também de comédia doméstica, um gatinho intrometido que não respeita a privacidade da casa de banho e tantas outras doces banalidades.
Lucio Castro volta a surpreender audiências.
Poder-se-ia quase assinalar um teor nostálgico na forma, não fosse Castro depressa contrariar essas presunções. Porque Adnan perde pouco tempo e pouco renega as suas fomes carnais. Faz-se sexo anónimo nos parques locais, mas é a intersecção do engate e da encomenda de bicicleta que produz a ligação mais forte, quando o estudante trava conhecimento com um estafeta de alma poética. Por instantes, “Drunken Noodles” afigura-se um romance de verão, até que o novo amor rompe com os registos naturalistas e produz uma orgia em frisos congelados a meio-gesto, uma referência a “My Own Private Idaho” e um romper com a realidade da história.
Entre noções de efemeridade e permanência, o anonimato do sexo casual e a intimidade que daí pode sair, a obscenidade do ato e a potencial transcendência do prazer, “Drunken Noodles” começa a rebobinar. O segundo capítulo abandona o estafeta e volta ao verão passado quando, vítima de um pneu furado, Adnan conheceu o artista bordador e com ele passou uma tarde mágica, feita de admiração artística e desejo gerontófilo, trocas de afetos e até o desabrochar da magia numa floresta que, na calada da noite, invoca faunos fetichistas que gostam de acariciar sapatos vermelhos e se penetrar com flautas.
O terceiro movimento antecede diretamente o encontro com o bordador, perdendo-se nas tensões domésticas de Adnan e seu namorado com quem há seis meses não tem relações. A frustração sexual asfixia a cena, tão espessa e incontornável, mas também possibilita confissões e um sonho que dá aos dois amantes uma benesse tão impossível quanto necessária. O sexo finalmente acontece no limiar do metatexto e da metafísica, um homem duplicado e o fantasma de um avô ressurecto para consumar desejos incestuosos, um gémeo de luto pela sua outra metade que, nesses devaneios noturnos, volta a ter uma cópia sua algures no mundo. “Drunken Noodles” não se rende ao surrealismo, mas está quase lá.
Para poupar latim e não aborrecer com detalhes extrâneos, vou ignorar o último segmento, a não ser para assinalar o seu apelo à forma artística do poema. Na primeira e na terceira passagem, houve o surgimento de prosa em cena. E no segundo capítulo viu-se a exaltação daquelas pinturas bordadas de registo cómico, perverso e sem vergonha alguma. Com gestos como estes, Castro está a abrir um diálogo inter-média e a moldar “Drunken Noodles” à imagem de uma autorreflexão da arte que pondera sobre seu propósito, sua existência. O que não podia ser mais apto para um contexto como o Queer Lisboa, diga-se de passagem.
O prazer possibilita a trascendência.
Um argumento comum perante críticas à hipersexualidade da arte queer recai na ideia de resistência, salientando os prazeres, até mesmo a promiscuidade, enquanto gesto político à revelia de puritanismos de origem hetero. Dito isso, é fácil contrariar essa argumentação com o simples facto de que, na falta de um discurso coerente, estes laivos lascivos tendem a tombar para o solipsismo, uma arte queer que se perde em espirais redundantes de prazer e a vontade de excitar sem mais nada por detrás ou para a frente. Uma provocação superficial, por outras palavras. Castro não ataca diretamente estas hipóteses, mas move o seu filme na direção de uma alternativa.
Isso emerge principalmente nos paradoxos de intimidade apresentados nos quatro capítulos, a forma como o sexo entre homens se predispõe enquanto veículo para uma série de liberações. Por vezes não é o orgasmo imediato, mas o rescaldo em que estranhos conseguem ser mais francos entre si do que com aqueles que lhes são mais próximos. Há também a questão da comunhão entre o artista e o público, em reflexo ao encontro de corpos anonimizados pelo engate furtivo ou pelos apps que regem tanta da vida sexual em tempos modernos. O amante enlutado sente-se inspirado pelo corpo de quem já não cá está, cada carícia e cada tabu quebrado são uma homenagem.
Noutras ocasiões, este foco obsessivo no sexo serve para transcender o quotidiano, quiçá os próprios confinamentos do engenho narrativo. Na euforia do cruising, Adnan consegue transportar-se para outras realidades, saltando do lugar comum para uma sublimação poética. Dito isso, se há um problema crítico nestes “Drunken Noodles”, será o próprio herói que, além de uma cara bonita e corpo de por água na boca, pouco oferece à fita. É mais uma não-entidade a quem maravilhas acontecem e à volta de quem a imaginação do realizador revolve. Enfim, mesmo com essa mácula, este é um trabalho delicioso, daqueles filmes que hipnotizam e embalam, que puxam pelo pensamento no mesmo instante que nos sussurram uma proposta indecente ao ouvido.
Drunken Noodles
Conclusão:
- Lucio Castro fez uma pausa meio transtornante de seis anos, mas volta à ribalta do circuito do cinema queer com “Drunken Noodles.” Apesar de não chegar aos mesmos píncaros magistrais de “Fin de siglo,” esta desventura nova-iorquina pelos dilemas amorosos e sexuais de um jovem estudante vale bem a pena ver. Mas preparem-se para uma obra peculiar, mais interessada nas possibilidades de formas artísticas e sua relação com o corpo queer do que com os usuais deleites de um texto dramático.
- Para quem tiver paciência e uma mente aberta, para quem esteja aberto aos devaneios de um artista do género, então “Drunken Noodles” é trabalho imperdível. Uma especial salva de palmas para todos os envolvidos no terceiro capítulo e seu clímax do homem duplicado, entre o sonho e a alucinação, o orgasmo e o luto sublimado. É nessa passagem que Laith Khalifeh mais vinga no papel principal e a prestação secundária de Matthew Risch é ainda mais extraordinária.
- Ainda a falar de atores, o neurocirurgião Ezriel Kornel continua a provar que a troca de carreira tão tarde na sua vida foi escolha meritosa. Mesmo num papel menor, como o bordador, ele exude o carisma de uma estrela de cinema.