“Fuori” apresenta-nos Goliarda Sapienza e a liberdade no feminino. ©Mario Martone

Trier, Martone e Simón, três espelhos íntimos sobre o cinema, intimidade e identidade. | Diário do Festival de Cannes (Dia 10)

“Sentimental Value”, de Joachim Trier, “Fuori”, de Mario Martone, e “Romería”, de Carla Simón, reflectem-se e complementam-se quase os últimos dias da Competição do Festival de Cannes 2025. São três obras que exploram, à sua maneira, os vínculos familiares, a memória e a liberdade interior. Um diário sobre cinema, intimidade e identidade.

Nos últimos dias do Festival de Cannes 2025, o Cinema Europeu voltou-se para dentro ou melhor para si mesmo. Três filmes em competição — “Sentimental Value”, de Joachim Trier; “Fuori”, de Mario Martone; e “Romería”, de Carla Simón —  que propuseram reflexões tocantes sobre a família, a memória e o amor como força transformadora. Se Trier olha para a arte como espaço de reconciliação emocional, Martone e Simón escavam silêncios femininos, à procura de identidade e liberdade. Em comum, têm o gesto íntimo e o cuidado com o que se diz — e o que fica por dizer.

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“Sentimental Value”: A arte como reencontro familiar

Depois de A Pior Pessoa do Mundo”, o cineasta norteguês Joachim Trier regressa a Cannes com um drama sereno e maduro sobre as feridas familiares que a arte pode reabrir — e, talvez até, curar. Em “Sentimental Value”, Nora (Renate Reinsve), atriz, regressa à casa da infância após a morte da mãe. Mas o reencontro com o pai ausente, Gustav (Stellan Skarsgård), um cineasta em retiro criativo, desperta-lhe memórias difíceis. Quando Gustav decide transformar a casa num cenário para um novo filme autobiográfico — protagonizado por outra atriz (Elle Fanning) — a tensão entre pai e filha ganha contornos quase meta-cinematográficos. O filme dentro do filme serve como espelho emocional para ambos, obrigando-os a confrontar ressentimentos e palavras não ditas. Há uma doçura nova no cinema de Trier, um olhar mais compassivo sobre as falhas humanas. A fluidez emocional da montagem, a fotografia quente de interiores e as interpretações contidas dão corpo a uma narrativa onde o cinema não é apenas metáfora: é território de reconciliação.

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“Fuori”: Goliarda Sapienza e a liberdade no feminino

Com Fuori”, o italiano Mario Martone (Nostalgia) distancia-se da biografia convencional para retratar a escritora e feminista Goliarda Sapienza (1924-1996) de forma íntima e radicalmente interior. A ação desenrola-se quase exclusivamente na cidade de Roma e penitenciária feminina de Rebibbia, nos seus arredores, onde Goliarda (interpretada por uma inspirada Valeria Golino) encontra uma inesperada companheira de liberdade: Roberta (Matilda De Angelis), jovem ativista com quem partilha celas, afectos e utopias. Martone filma o interior como espaço de resistência e o exterior como catarse. A estética de grão digital e o formato 1.66:1 (quadrado) evocam a Roma dos anos 80 com melancolia e detalhe, enquanto a música do compositor inglês Robert Wyatt (ex-Soft Machine) torna-se extensão da subjetividade da protagonista. “Fuori” é, acima de tudo, um filme sobre o “lá fora” que habita dentro de quem se recusa a ser silenciado. Na relação entre Goliarda e Roberta emerge uma cumplicidade que transcende as categorias familiares: mãe e filha, mestra e discípula, duas mulheres ligadas por um desejo comum de autonomia e expressão.

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“Romería”: Fragmentos de um passado invisível

Na continuação da sua investigação sensível sobre a memória e a identidade, em Alcarràs”, a realizadora espanhola Carla Simón parte agora da Catalunha, para a Galiza com “Romería”, o seu filme mais contido e meditativo até à data. Marina, (Llúcia Garcia) jovem aspirante a cineasta, órfã e adoptada por uma família catalã, vai à Galiza à procura da família do pai falecido na década de 80 de SIDA, aliás como a mãe mas em Barcelona. Porém a viagem torna-se rapidamente mais espiritual do que genealógica: cada parente oferece apenas pedaços incompletos, versões desencontradas de uma história ausente e que de certo modo querem apagar. A paisagem galega, húmida e envolta em neblina, as águas geladas do mar de Vigo e as belas Ilhas Cíes, transforma-se em espelho da busca interior. A estrutura em episódios e os planos longos e contemplativos reforçam a sensação de desorientação emocional. Marina filma partes da viagem com uma câmara pessoal, introduzindo um registo diarístico que ecoa na própria abordagem pessoal da realizadora. Mais do que responder a perguntas, “Romería” escuta o silêncio. É uma ode à ausência, àquilo que nunca se chega a saber completamente — sobre os outros e sobre nós mesmos.

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Sentimental Value de Joachin Trier
Nora (Renate Reinsve), é uma atriz, que regressa à casa da infância. ©Kasper Tuxen

O íntimo como gesto político

Apesar de distintos na forma, os três filmes convergem num gesto comum: filmar a intimidade como território de escuta e revelação. Em “Sentimental Value”, é o cinema que permite sarar uma relação entre pai e filha. Em “Fuori”, a prisão torna-se espaço de liberdade interior. Em “Romería”, a busca pelas raízes revela-se um processo de reconstrução subjetiva. Os três são filmes que recusam a grandiloquência, preferindo a palavra sussurrada e o gesto contido. Que falam de amor — filial, fraterno, silencioso — como força invisível que atravessa gerações e cicatrizes. Que nos mostraram, em plena Cannes, que o mais revolucionário no cinema pode ser, afinal, o que temos de mais íntimo. Se “Sentimental Value” é sobre a dificuldade de falar, “Fuori” e “Romería” ensinam-nos a escutar. E assim, nestes últimos dias do festival, o cinema europeu confirma-se como espelho e refúgio — um lugar onde a memória, a família e a liberdade se tornam matéria de criação, resistência e cura.

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