O poético “Sound of Falling”, de Mascha Schilinski, e um intenso “Two Prosecutors”, de Sergei Loznitsa, abriram a Competição | Diário do Festival de Cannes 2025 (Dia 3)
A Competição Oficial do Festival de Cannes 2025 abriu com duas propostas que, embora radicalmente distintas nas suas formas, mergulham no coração da memória coletiva e da passagem do tempo. “Sound of Falling”, da realizadora alemã Mascha Schilinski, e “Two Prosecutors”, do consagrado cineasta ucraniano Sergei Loznitsa.
O poético Sound of Falling, de Mascha Schilinski e o intenso Two Prosecutors, de Sergei Loznitsa, são exactamente filmes que convocam os fantasmas da história europeia para os colocar sob olhar clínico ou poético. Num dia marcado por emoções fortes, os acreditados do Festival de Cannes 2025, confrontaram-se com os espectros da guerra, da repressão e do trauma transgeracional.
“Sound of Falling”: O tempo como fantasma
A realizadora alemã Mascha Schilinski, revelada com Dark Blue Girl na Berlinale 2017, estreou-se na Competição Oficial de Cannes com Sound of Falling, um drama lírico e multigeracional, a quatro vozes, que atravessa cem anos de história na mesma casa de um quinta, na região rural de Altmark, na Alemanha. Quatro jovens mulheres — em 1910, 1940, 1980 e 2020 — vivem realidades distintas, porém atravessadas por uma mesma inquietação existencial e herança de dor.
Entre o gótico e o romântico
Filmado com notável apuro visual, o filme destaca-se pelo seu uso da luz e da paisagem sonora, compondo uma atmosfera contemplativa, entre o gótico rural e o romantismo pictórico. A realizadora costura o tempo como se fosse tecido: poroso, sobreposto, assombrado. A infância e juventude das protagonistas são marcadas por silêncios, ausências e gestos que repetem padrões de opressão e preconceitos.
O trauma e a memória
Neste contexto, destacam-se as interpretações de Lena Urzendowsky, Lea Drinda, Luise Heyer e Susanne Wuest, bem como o modo como Schilinski lida com o trauma e a memória — temas cada vez mais relevantes no contexto do cinema europeu contemporâneo. Sound of Falling poderá ser o filme que consagra a realizadora como um novo nome de referência, no cinema alemão ao lado de Maren Ade (Toni Erdmann) ou Valeska Grisebach (Western).
“Two Prosecutors”: justiça impossível sob o jugo soviético
Em contraponto ao lirismo de Schilinski, Two Prosecutors, de Sergei Loznitsa, mergulha nos corredores sombrios da União Soviética de 1937, em plena era da Grande Purga estalinista. Baseado num texto inédito do dissidente Georgy Demidov, o filme é um thriller político e ético, centrado em Alexander Kornev (Aleksandr Kuznetsov), um jovem procurador que decide investigar uma carta escrita com sangue por um prisioneiro injustamente condenado.
A precisão documental
Loznitsa regressa com a precisão quase documental que o caracteriza, filmando o terror burocrático com o rigor de um anatomista social. A tensão crescente da narrativa e o choque entre idealismo e brutalidade estatal fazem deste filme um dos mais densos da competição. Produzido por um consórcio internacional (França, Alemanha, Países Baixos, Roménia, Letónia e Lituânia), Two Prosecutors já garantiu distribuição em diversos territórios, o que atesta o interesse global por uma história local, mas tristemente universal.
Vivemos tempos sombrios
Em entrevista à Variety, Loznitsa alertou: “Parece que estamos a regressar à véspera da Segunda Guerra Mundial. A sombra do totalitarismo volta a pairar sobre nós.” A sua crítica do autoritarismo ganha assim ressonância inquietante no atual contexto político europeu e global.
Impressões do dia: tempo em colapso, justiça impossível
Sound of Falling e Two Prosecutors, são filmes que desafiam as convenções narrativas clássicas. Um faz do tempo um fluxo sensorial e fantasmático; o outro, uma linha trágica e tensa que conduz à impotência diante da máquina repressiva. Em comum, revelam um cinema europeu preocupado em escavar a história — não para a ornamentar, mas para a compreender. Neste nosso terceiro dia do Festival de Cannes 2025, ficamos com a certeza de que o cinema continua a ser o espelho mais inquietante das nossas memórias, das nossas feridas e dos nossos fantasmas por resolver.
JVM