©Midas Filmes

Donbass, em análise

A Ucrânia e o seu povo estão em destaque nos cinemas nacionais com “Donbass”, uma obra do cineasta Sergei Loznitsa.

TU NÃO VISTE NADA NO DONBASS…!

Primeiro, devemos chamar a atenção para o facto da longa-metragem de ficção DONBASS, corajosamente estreado em Portugal pela mão da MIDAS FILMES, não ser um filme deste ano ou do ano passado, e muito menos um filme de “guerras” mais recentes cujas consequências devastadoras foram infelizmente ampliadas pela invasão da Ucrânia por parte da Federação Russa. Na verdade, o filme realizado pelo cineasta Sergei Loznitsa foi produzido em 2018, e nessa altura já um inequívoco e brutal conflito armado assolava a região do Donbass. Para ser mais preciso, a rodagem de DONBASS ocorreu, pelo menos, quatro anos antes do período que alguns agora falaciosamente andam para aí a dizer ser uma guerra com pouco mais de cem dias. Se outras qualidades esta obra não apresentasse, e há muitos e bons motivos para a ver de fio a pavio, essa seria uma das mais importantes, ou seja, fazer-nos recordar, sobretudo aos mais distraídos, que esta guerra que hoje ocupa os noticiários e invade a comunicação social nas suas diversas frentes começou realmente há mais de oito anos. E é caso para perguntar: os que agora levantam a voz contra o que se passa, na altura em que os combates começaram estavam onde? Para onde dirigiram a sua melhor atenção? Não deram conta ao longo desses anos do que já então se passava? Os catorze mil mortos que se estimam serem as vítimas desde 2014 até ao dia 24 de Fevereiro de 2022, entre eles muitos civis, não eram motivo suficiente para se preocuparem como agora se preocupam com o destino dos povos que lá habitam? Que critérios são os daqueles que andaram a assobiar para o lado, não apenas relativamente ao que se passava nas fronteiras da Ucrânia e da Federação Russa, mas igualmente na Síria, no Iémen, e noutras zonas onde prevalecem conflitos de igual ou até, proporcionalmente, de maior dimensão? Para já não falar do que se passa diariamente e há demasiados anos nas costas da Europa com os refugiados oriundos da Ásia, do Médio-Oriente e do continente africano, sobretudo os que atravessam o Mediterrâneo e lá se afogam, afundando com o seu corpo, mais do que o sonho, a ilusão de uma vida melhor?

Donbass
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Em segundo lugar, recordemos quem é Sergei Loznitsa. Nasceu em 1964, na Bielorrússia, na altura parte integrante, como a Ucrânia, da antiga União Soviética. Mas cresceu em Kiev, capital da Ucrânia. Naquela cidade licenciou-se em Matemática Aplicada, e entre 1987 e 1991 foi investigador no Instituto de Cibernética de Kiev, na área da Inteligência Artificial. Tradutor de Japonês foi outra das aptidões que desenvolveu, e em 1997 formou-se em realização no VGIK, a Universidade Cinematográfica do Estado Russo, sediada em Moscovo, a mais antiga das escolas de cinema do mundo, fundada por cineastas como Lev Kulechov e Vladimir Gardin, por onde passaram alguns dos nomes maiores da cinematografia da URSS e da História Mundial do Cinema como Sergei Eisenstein, Aleksander Dovzhenko, Mikhail Romm, Sergei Bondarchuck, entre dezenas de outros. Desde 1996, Sergei Loznitsa dedicou a maior parte da sua actividade a documentários de curta e longa duração, quase sempre obras que se perfilam entre as de maior impacto no campo específico do género como, por exemplo, O CERCO DE LENINEGRADO, 2016, que premiei no INDIELISBOA e exibi no ONDA CURTA, e o mais recente FUNERAL DE ESTADO, 2019. De qualquer modo, não hesitou em abordar outros caminhos, em que mais uma vez como mero exemplo, encontramos na sua filmografia uma bela e contundente ficção, A MINHA ALEGRIA, 2010, e ainda essa outra obra ironicamente intitulada UMA MULHER DOCE, 2017.

Donbass
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Passemos então ao filme DONBASS. Com a acção situada em 2015, possui como protagonistas diversas figuras arrancadas a páginas dramáticas e por vezes dramaticamente surrealistas da vida que se deixa viver no Leste da Ucrânia nas regiões ocupadas e controladas por forças separatistas alegadamente apoiadas por Moscovo. Não se pense que os soldados ucranianos de ambos os lados da barricada são os únicos a ser visados por esta saga crítica e mordaz sobre os dias da guerra. Estruturado numa série de episódios vagamente relacionados uns com os outros, mas que no fundo fazem parte integrante de um mesmo mosaico ficcional, ao longo da narrativa iremos dar conta de figuras sui generis como, logo a abrir, um grupo de pessoas (com especial incidência para uma carantonha que se deixa maquilhar e se queixa das olheiras quando estas são a coisa mais simpática do seu rosto) que se prestam a servir de actores e figurantes numa encenação para um qualquer serviço noticioso, uma reportagem falsa prevista para se acreditar num ataque sofrido pela população mas que só existiu, naquele caso, para os devidos efeitos de propaganda rafeira. Sergei Loznitsa não podia ser mais certeiro nem mais sincero nos seus propósitos. Como se costuma dizer, não está ali para enganar nem encantar ninguém, e para esta primeira sequência de DONBASS seguramente que se lembrou de casos similares e reais ocorridos noutras guerras, e ainda da célebre máxima: “Na guerra, a primeira vítima é a verdade”. Entretanto, mais para a frente, iremos ver como uma arrivista procura levar a mãe para um local que pensa ser mais seguro, insultando os que sobrevivem com ela numa cave atravessada por corredores apinhados e lúgubres, um subterrâneo que mais parece uma versão infecta das cavernas primitivas, apenas porque sente as costas quentes e se dá muito bem, com a “ajuda” da sua saia “subida” até ao umbigo, com os homens fortes de uma das partes em confronto. Mais para a frente, e numa das mais violentas e perturbantes sequências de DONBASS, veremos como a população, aparentemente resignada com a sua sorte, pode de um momento para o outro mudar de agulha e modificar radicalmente o seu comportamento perante a oportunidade de se vingar de um alegado “exterminador”, um mercenário a soldo aparentemente do exército ucraniano (partimos desse princípio por causa da bandeira que lhe enrolaram ao pescoço) que em abono da verdade não nega o seu miserável estatuto de criminoso. Mas o que importa aqui salientar não será o juízo moral que se pode fazer deste “soldado”, mas antes a constatação da falta de racionalidade que pode sobrepor-se e esmagar qualquer centelha de lucidez quando as posições ficam extremadas pela normalização do horror no dia a dia e por se estar submetido a um clima de pressão e violência contínua, capaz de destruir o mínimo que resta de humano na alma dos homens e mulheres que não conseguem fugir dos conflitos, a começar pelos seus próprios conflitos interiores. Não por acaso, logo a seguir a esta sequência assistimos a um casamento encenado como se fosse um delírio de absurdo revisteiro, provavelmente o segmento que já não fazia falta e que no seu exagero de farsa acaba por fragilizar um pouco o que antes víramos e fora quase sempre muito forte. Para além do mais, a sequência dura muito para lá do que seria razoável para que alguma eficácia prevaleça. No final, voltamos ao local inicial das fake news, mas desta vez a notícia será outra. Mas essa deixo para reflexão de quem quiser ver este filme com olhos de ver, fazendo a análise concreta da situação concreta. Não precisamos de estar ao lado do realizador a 100%, nem ele nos pede isso, nem precisamos de saber mais do que aquilo que ele nos dá, um relato duro e cru de um acontecimento inserido numa guerra suja que como qualquer outra guerra deveria ser evitada.

Donbass
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Dito isto, concluo salientando o facto de nestas alturas não só a natureza como o pensamento humano deixar muito a desejar. Só assim se pode justificar a expulsão de Sergei Loznitsa da Academia de Cinema da Ucrânia, acusado de “cosmopolitismo”, sendo apontadas para essa “deslealdade” razões como a moderação do realizador que, embora criticasse a invasão e o governo liderado por Vladimir Putin, se insurgia contra o boicote global aos filmes e cineastas russos proposto pela instituição ucraniana. Passo a palavra ao realizador, reproduzindo excertos da Declaração Pública que assinou e publicou no Facebook a 19 de Março de 2022: ““Na tragédia da guerra, acredito firmemente que se deve manter o bom senso. Sou contra o boicote dos meus colegas, cineastas russos, que estão a manifestar-se contra os crimes do regime de Putin. (…) Fiquei surpreendido ao ler a decisão da Academia de Cinema da Ucrânia de me expulsar por ser cosmopolita. Traduzido do grego, a palavra “cosmopolita” significa “cidadão do mundo” (…) Desde o Século XVIII que a definição de cosmopolita vem sendo usada para descrever uma pessoa aberta a novas ideias e sem preconceitos de natureza cultural, política ou religiosa. (…) Os membros da Academia exigem que a comunidade internacional “não me aceite como representante da esfera cultural ucraniana”. Nunca na minha vida representei qualquer comunidade, grupo, associação ou “esfera”. Tudo o que digo e faço foi e será sempre expressão das minhas posições individuais. Sou e serei sempre um cineasta ucraniano”.

Para os devidos efeitos, DONBASS, um filme que vem do passado para dar mais luz ao presente e, naturalmente, um filme a não perder de um cineasta independente e sem papas na língua.

Donbass, em análise
Donbass

Movie title: Donbass

Director(s): Sergei Loznitsa

Actor(s): Tamara Yatsenko, Irina Zayarmiuk, Grigory Masliuk, Boris Kamorzin, Lyudmila Smorodina

Genre: Drama, 2018, 122 min

  • João Garção Borges - 80
80

Conclusão:

PRÓS: Uma obra de ficção inspirada nos desastres políticos, militares e sociais da guerra moderna (o seu pressuposto faz lembrar um pouco a filosofia patente na maioria das gravuras intituladas “Los Desastres de la Guerra” do grande Francisco de Goya), que procura ver mais para além da superfície, para além do imediato das análises a preto e branco, do mais ou menos visível, do mais ou menos grotesco, ou do mais ou menos oculto de um conflito iniciado em 2014 no Leste da Ucrânia.

Em 2018, recebeu o Prémio de Melhor Realização na secção UN CERTAIN REGARD do Festival de Cannes.

CONTRA: Protelada em muitos países por pressões que não deviam existir, a sua estreia aqui e agora arrisca-se a introduzir algum ruído na legítima discussão gerada em redor da generalidade das matérias que diariamente nos chegam oriundas dos palcos de guerra ucranianos. Mas mais vale agora do que nunca, e Sergei Loznitsa merece o nosso maior apoio pela lucidez da abordagem de um conflito que não começou há meses mas há já vários anos, uma guerra que ele ou qualquer cidadão responsável, qualquer que seja a nacionalidade, não pode ignorar.

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