CineEco ’16 | A Suplicação – Vozes de Chernobyl, em análise

O filme de abertura da 22ª edição do festival CineEco é A Suplicação – Vozes de Chernobyl, um retrato sobre os extremos do sofrimento humano e a incapacidade de esquecer.

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Começa hoje, em Seia na Serra da Estrela, a 22ª edição do festival de Cinema Ambiental também conhecido como CineEco. Até 15 de outubro, serão exibidos várias obras, tanto nacionais como internacionais, em que preocupações ambientais e ecológicas marcam posição no seu centro ideológico. As sessões são praticamente todas de entrada gratuita e, para dar início às festividades, os organizadores deste evento selecionaram um dos documentários mais importantes deste ano que, para além de uma série de outros fatores de importância, será a fita a representar Luxemburgo na competição ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro a ser entregue em 2017.

Falamos, pois claro, de A Suplicação – Vozes de Chernobyl, um novo documentário de Pol Cruchten que, tal como o seu título sugere, se foca no desastre nuclear de Chernobyl ou, mais especificamente, no modo como essa calamidade veio a afetar as vidas de uma infinidade de pessoas que viviam nas proximidades da fábrica onde decorreu a fatídica explosão. Apesar do seu caráter documental, convém sublinhar que este filme é, para além de um exposé cinematográfico, uma adaptação literária de uma obra do mesmo nome de Svetlana Alexievich, Prémio Nobel da Literatura 2015. Nessa obra, a escritora bielorrussa compilou uma série de entrevistas a sobreviventes do desastre, construindo uma história oral, onde é posta a nu a dimensão de incomensurável sofrimento humano desta tragédia, assim como as ações de apagamento e esquecimento institucional que foram promovidas, na altura, pelas autoridades soviéticas.

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Seguindo a forma do livro, A Suplicação – Vozes de Chernobyl centra toda a sua construção fílmica no mecanismo do voz-off, por onde atores franceses leem e interpretam alguns dos relatos compilados por Alexievich na sua magnum opus. Longe de distanciar a audiência das palavras e seu conteúdo, esta abordagem limpa o discurso da distração da emoção na primeira pessoa, apresentando, sem floreados interpretativos, as cruas palavras e sua avassaladora história.

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Quando ouvimos, por exemplo, o testemunho de uma mulher que perdeu o marido e, mais tarde, a filha que ainda estava em gestação no seu ventre, ou a história de um homem que, das suas posses, apenas manteve a porta de casa onde deitou o corpo da filha de seis anos após a sua morte, a limpeza quase teatral no discurso apenas serve para afiar ainda mais a faca que Cruchten nos está a espetar no coração, como que a exigir a nossa empatia violenta e indignação. E é também nessa claridade que se evidencia um dos temas mais dolorosos do filme, o da incapacidade de esquecer o pesadelo e o modo como esse mesmo esquecimento é perigoso, mesmo quando atenua o sofrimento.

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Note-se que ainda não se falou de qualquer outro componente que não o sonoro, o que é deliberado, sendo que as imagens e sua relação com o voz-off representam o elemento mais fascinante e problemático de todo o filme. Num estilo que recorda ao de leve documentários do Holocausto como Shoah e Noite e Nevoeiro, Cruchten decide fugir à ilustração direta, preferindo focar a sua câmara, ora em imagens de uma natureza poética como corpos nus deitados na terra, animações bizarras e encenações estilizadas, ora nos espaços da calamidade na sua condição atual.

Esta abordagem é, no fundo, uma espécie de ilustração não ilustrativa da palavra que nunca ousa tornar isto num espetáculo sensacionalista ou explorar os potenciais mais lúgubres das histórias, mas que, ao mesmo tempo, parece mais interessado em materializar ideias e emoções abstratas ao invés de realidades físicas. Por exemplo, quando vemos as flores que florescem em torno da central nuclear e pintam a paisagem com as suas cores, não estamos a ver nenhum documento de Chernobyl nos tempos modernos, mas sim uma ponderação poética sobre o vazio de tal imagem. Pois, afinal, nesta cidade fantasma quem é que está ali para admirar essa beleza, senão as sombras errantes de quem morreu nessa guerra contra a radiação que tantas vidas ceifou. A fotografia é lindíssima, mas é precisamente na sua beleza que ecoa o vazio arrepiante que devém da falta de vida humana e sua vibrante vitalidade.

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A certa altura, já perto do final desta obra, ouvimos um homem, que havia sido uma criança aquando destes eventos, a falar de como, na escola os professores haviam pedido aos alunos que desenhassem a radiação. Sem saber como representar esse veneno invisível, o rapaz pintou uma interpretação sua onde a radiação era chuva amarela que caía do céu e um rio vermelho que rasgava a terra. Tal desenho, é quase uma expressão emocional de uma mente inocente a tentar racionalizar uma calamidade muito maior que a sua pessoa e é exatamente essa a perspetiva dos cineastas. Os tableaux líricos e as sequências simbólicas resultam numa confusão de registos e oscilações tonais de um cariz quase experimental, mas, por detrás de toda essa incoerência, está a incapacidade humana de lidar com um pesadelo da escala de Chernobyl.

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Essa qualidade experimental e subjacente ideia de um cineasta a admitir a sua impotência face à complexidade do seu sujeito acrescentam uma pontada de necessária maturidade artística e humildade documental a todo este projeto. Consequentemente, a experiência final de A Suplicação – Vozes de Chernobyl é a de observarmos uma mente a tentar fazer sentido dos horrores que lhe são relatados. Nesse diálogo entre imagem e testemunho, há algo de instável mas poderoso que deixa sempre aberta a porta à interpretação livre de uma audiência que, assim sendo, é convidada a ela também pensar e refletir sobre as palavras que lhe são oferecidas. Um documentário que admite os seus limites ao mesmo tempo que estimula o diálogo, a reflexão e informa as audiências sobre um dos maiores desastres do século XX é, certamente, uma obra de considerável valor e incontornável importância.

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O MELHOR: O poder cáustico dos relatos e os horrores e indignações a eles subjacentes.

O PIOR: A natureza derivativa de muitas das imagens mais simbólicas e estilizadas.


 

Título Original: La Supplication
Realizador:  Pol Cruchten
Elenco: Dinara Drukarova, Camille Saltet de Sablet d’Estières, Marc Citti, Yves Pignet

CineEco | Documentário, História | 2016 | 82 min

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