"The Crown" | © Netflix

The Crown, quarta temporada em análise

Abordando a tumultuosa década de 80, “The Crown” oferece uma das suas temporadas mais negras e conflituosas. Com Diana e Thatcher no elenco de personagens, a série da Netflix chega a um novo píncaro de drama.

Em certa medida, as melhores qualidades e os maiores defeitos do “The Crown” são como as duas faces da mesma moeda, o reflexo inglório uns dos outros. A ambição do projeto de Peter Morgan é de louvar, sua tentativa de retratar a família real britânica desde o fim da 2ª Guerra Mundial até aos dias de hoje, não escondendo os lados feios da dinastia e evitando indevidas glorificações. Contudo, essa mesma ambição é a semente de onde brotam os maiores problemas da série. A quarta temporada, focada nos anos 80, põe esta dinâmica a descoberto com calcinante claridade.

Dito de uma forma muito simples, trata-se de um caso de demasiada história para muito pouco tempo. Com dez episódios que funcionam, mais ou menos, como filmes em miniatura, “The Crown” tem menos de uma dezena de horas para sumarizar uma das décadas mais conturbadas da história britânica, especialmente no que se refere a política e à Coroa. Afinal, essa foi a década dominada pela sombra monstruosa de Thatcher, uma época marcada pelo aquecer da agressão do IRA, pela greve dos mineiros e a Guerra das Malvinas e níveis monumentais de desemprego. Na sua forma atual, os episódios parecem apressados, meio desconexos, sentindo-se a necessidade de mais tempo para retratar a era.

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Entenda-se que este foi também um período marcado pelo matrimónio do Príncipe Carlos e Diana. A história que começou como um conto-de-fadas que apaixonou o mundo depressa amargou, tornando-se num pesadelo amoroso que produziu tanto escândalo quanto dor. Dessa árvore de infelicidade, ramificou-se todo um jardim que pôs em questão a legitimidade da monarquia assim como a sua moralidade. Será que esta família de snobs demoníacos, entes pouco queridos e muito insensíveis, de nazis e adúlteros, merece todo o privilégio que tem? Merecem o sustento do povo britânico, seu amor e devoção?

Morgan e sua equipa jamais dão resposta definitiva a estas questões, mas só o facto de as levantarem merece aplauso comedido. Dito isso, a insistente ambivalência do programa tanto beneficia como tira mérito ao projeto, dando sempre a aparência de covardia ideológica. Nos dias que correm, quando conservadorismos de direita cada vez mais tombam para o nacionalismo cego, seria proveitoso examinar com olho crítico o regime de Thatcher. “The Crown” faz isso, não deixando de mostrar o racismo e xenofobia da antiga Primeira-Ministra, mas não consegue resistir a certos gestos elegíacos. O último instante da política na série sabe a imerecida celebração.

Já na história dos Príncipes de Gales, a ambivalência do programa até resulta em esplêndido drama. De novo, a fonte do que é mau também é de onde vem o melhor da série. Neste caso, a vontade de dizer e não dizer, de manter tudo numa plenitude da reticência absoluta dá aso a um retrato fantasmagórico de um casamento condenado ao fracasso desde o início. Longe de fixar uma caracterização limitada da Princesa Diana e sua relação com o marido, a narrativa deixa que esse ídolo do passado seja tão mutável como sua imagem pública. Esta Diana tem tantas faces como a pessoa real, o ídolo, a celebridade profissional, a inocente martirizada pela Coroa, a heroína, a vilã, a vítima e a santa solitária.

Ou seja, em termos de conteúdos narrativos e análise histórica, a série mantém-se na mesma linha de sempre. A segunda temporada teve uma estrutura mais forte, mas, de resto, a série tem sido bastante consistente. É claro que, tanto se mantém igual, tanto se melhora. Os figurinos deste quarto ano são esplendorosos, desde a reprodução do vestido de casamento de Diana até ao exorcismo estilístico que são os trajes conservadores de Thatcher. Também os atores chegam a novos patamares de excelência, cada membro do elenco trazendo novos trejeitos e gradações de performance ao seu trabalho e à série.

Olivia Colman continua a ser uma sublime sucessora de Claire Foy no papel da Rainha. Sua melhor hora, nesta temporada, é o quinto episódio, uma história focada na entrada de um homem desconhecido nos aposentos da rainha. Tobias Menzies encontra um humor plácido no Príncipe Filipe e, tal como a Princesa Margarida de Helena Bonham Carter, ele rouba todas as cenas em que aparece como ator secundário. É claro que Carter, além de ser uma assídua presença marginal, também tem direito a protagonizar um episódio onde surpreende e quase ganha o título de melhor intérprete da temporada.

Dizemos quase porque este é um programa onde até a mais genial prestação tem competição renhida, especialmente este ano. Apesar do material promocional continuar a propor a rainha de Colman como a personagem principal da série, a quarta temporada é dominada por um trio de personagens que não se sentam no trono (ainda). Gillian Anderson segue os passos de Meryl Streep e interpreta Thatcher como uma atriz do teatro político. Trata-se de um trabalho estilizado, no limiar da caricatura. Mais do que o texto em si, é o trabalho de Anderson que mais sugere um comentário negativo à figura da Primeira-Ministra e antiga líder do Partido Conservador.

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Acerca de Carlos e Diana, o que mais impressiona é quanto a sua química, longe de vibrar com energia romântica, se caracteriza por uma animosidade febril. Mesmo quando as personagens ainda fingem morrer de amores um pelo outro, há uma insinceridade sabedora no trabalho dos atores, uma subtil antipatia que nos estabelece os paradigmas para a futura rutura matrimonial. Josh O’Connor, que, o ano passado, conseguiu tornar o Príncipe Carlos numa figura simpática e afável, alterou por completo o seu retrato. O que outrora parecia ser um refrescante individualismo amadureceu em forma de rancor e inveja.

Quanto à Diana de Emma Corrin, a atriz é uma revelação. A mímica da voz impressiona, tal como acontece com a sua semelhança física à diva que morreu naquela triste noite de 1997. No entanto, esta performance tem muito mais que se lhe diga do que mera imitação. Inicialmente, Diana é como um espectro que flutua indolentemente pelo mundo, uma jovem cuja personalidade ainda se está a formar e cujos desejos reais nem sempre são fundamentados pela razão. Com o passar dos anos e dos episódios, novas facetas vão sendo reveladas e, chegada a última hora, ela tornou-se numa figura de pura tragédia. Até o seu sorriso é marcado por uma assustadora sombra de catatonia.

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Para quem amou as temporadas anteriores de “The Crown”, esta nova temporada será uma delícia sem igual. A História real está cada vez mais fascinante e discutível e, mesmo que a série seja um quiçá superficial devido a questões de tempo, a sua dramatização e retrospetiva continuam a impressionar. Se nada mais contar, pelo menos as roupas glamourosas e o elenco consagrado são razões suficientes para ir à Netflix e carregar no play para “The Crown”.

The Crown, quarta temporada em análise
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Movie title: The Crown

Date published: 15 de November de 2020

Actor(s): Olivia Colman, Tobias Menzies, Josh O'Connor, Helena Bonham Carter, Marion Bailey, Charles Dance, Erin Doherty, Emma Corrin, Gillian Anderson, Claire Foy, Tom Burke

Genre: Drama, História, Biografia, 2020

  • Cláudio Alves - 75
75

CONCLUSÃO:

Para fãs da série, esta nova temporada de “The Crown” é mais do mesmo, no melhor sentido possível do termo. Antimonarquistas e os que detestam o legado de Thatcher poderão sofrer de umas quantas úlceras de raiva (é verdade, acreditem), mas o drama da quarta série é sublime e seus atores continuam a ser uma equipa de génio.

O MELHOR: Emma Corrin e Gillian Anderson, Josh O’Connor e Helena Bonham Carter, todo o elenco, se formos dizer a verdade. Isso e as insinuações de amoralidade hedonista na personagem do Príncipe André.

O PIOR: Quanto a série tem de passar a correr pelas complexidades da História. Há também que mencionar que, mais uma vez, Peter Morgan incluiu um veado simbólico numa narrativa sobre a Casa Real britânica. É uma metáfora risivelmente pateta.

CA

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