MOTELx ’16 | The Transfiguration, em análise

Em The Transfiguration, um adolescente obcecado com vampiros é deliberadamente consumido por desejos e aspirações monstruosas como modo de se evadir da realidade e dos seus traumas.

The Transfiguration motelx

No panorama do cinema de género, o vampirismo tem-se sempre afirmado como uma das monstruosidades com mais valor simbólico e metafórico. Muitas vezes, essa maladia sobrenatural é utilizada como modo de apresentar um mundo de hedonismo desregulado, com o ato de sugar sangue a ser um equivalente a sexo ou ao consumo de drogas. Basta olharmos para o recente Only Lovers Left Alive de Jim Jarmusch para vermos um filme de autor onde o vampirismo é uma metáfora bem explicita do vício, por exemplo a toxicodependência. Nos momentos iniciais de The Transfiguration, o primeiro filme do nova-iorquino Michael O’Shea, parece que estamos no caminho de mais uma obra semelhante. Nessa abertura, um homem numa casa de banho pública é incomodado por ruídos estranhos que ouve de um cubículo, concluindo que se trata de um ato sexual. No entanto, quando a câmara entra no espaço interdito, vemos que não se trata de um momento erótico, mas sim de um assassinato que termina no consumo de sangue. Mas, por muito estranho que pareça, neste filme, estamos bem longe do uso do vampirismo como metáfora sexual.

Basicamente, apesar de The Transfiguration estar a ser promovido como um filme de terror, esta obra é, na verdade, um estudo de personagem executado com os estilos típicos dos indies norte-americanos, como um ritmo letárgico e estética realista. “Realista” é uma palavra fulcral neste filme, sendo muitas vezes invocada por Milo, o protagonista adolescente, para criticar ou valorizar algum tipo de representação de vampiros. No entanto, por muito que ele olhe as suas cassetes e vídeos online como detentores de uma realidade mágica, o filme mantém sempre os pés bem assentes na terra, esvaziando-se de quaisquer indícios de sobrenatural e sempre vendo esse dito “realismo” como uma ilusão.

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Aqui, o vampirismo é sempre um declarado artifício psicótico e o realizador nem sequer mostra muito interesse em retratar suspense ou tensão típica de um filme de terror. Tal abordagem faz com que este seja um trabalho muito impróprio para um festival de terror como o MOTELx, onde audiências cheias de expetativas específicas acabam por ver um filme que as trai e apenas vai atirando ao ar títulos de outras obras que, se calhar, um grupo de fanáticos pelo terror preferiria estar a ver.

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Para complicar ainda mais a relação entre The Transfiguration e a sua potencial audiência, este é um estudo de personagem bastante atípico. O’Shea está sempre a encenar o filme à volta do seu jovem protagonista afro-americano, mas, por muito próximo que ele fique da sua face, Milo é quase sempre uma cifra inescrutável. Por outro lado, é o ambiente social e urbano que se estende à sua volta que acaba por caracterizar a sua identidade e interioridade. Ajuda muito que o cineasta esteja a buscar muita inspiração à sua vida pessoal, retratando o bairro onde cresceu com uma desconcertante autenticidade que influencia de modo invariável o retrato que vamos pintando sobre a face impávida do aspirante a vampiro. Na verdade, Milo parece estar tão confuso em relação às suas ações como nós e é precisamente nessa intencional indefinição, que O’Shea acaba por conseguir justificar as constantes referências aos clássicos do terror, utilizando estes consumos culturais como uma parte integral do puzzle que é Milo.

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Por tudo isso, há que saudar, com boquiaberta admiração, o trabalho exímio e monumentalmente difícil de Eric Ruffin no papel principal. Apesar da sua juventude, o ator consegue construir uma prestação baseada singularmente na apatia inexpressiva, apenas sugerindo momentos de vulnerabilidade e interioridade quando O’Shea os exige, como é o caso de um inocente sorriso pós-coital. Ele inverte assim o típico processo de desenvolvimento de personagem, deixando que a construção fílmica à sua volta, como os cenários, a música e a sonoplastia, defina a sua pessoa de fora para dentro, quase que por osmose ao invés da expectável dissecação psicológica. Observar o jovem é testemunhar o confiante espetáculo de controlo, segurança e precisa alienação.

Todo esse elogio à fachada neutra de Ruffin não implica, contudo, que The Transfiguration seja um filme desinteressado em questões psicológicas. Para bem dizer a verdade, o primeiro esforço cinematográfico de Michael O’Shea é perfeitamente obcecado em explorar o cinema e a imagética de terror como um meio de lidar com o trauma.  Neste caso, esse trauma provém principalmente do suicídio da mãe do Milo que, depois do seu pai já ter morrido durante a infância do filho, deixou o protagonista órfão e aos cuidados do irmão mais velho. Os desenvolvimentos e reviravoltas que O’Shea encontra neste jovem, a tentar criar para si mesmo uma nova identidade indestrutível, têm variados graus de interesse e complexidade, sendo que a final desambiguação é o nadir de toda essa exploração psicológica, injetando o filme com uma misantropia desnecessária.

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Para além disso, a conclusão de The Transfiguration, tem leves tons de acidental racismo que deixam um mau gosto na boca da audiência como resultado de o filme tentar pintar questões complexas com pinceladas demasiado grossas. Não obstante esses fracassos, aonde se podem acrescentar muitas mais especificidades como um romance adolescente pouco convincente, The Transfiguration está igualmente recheados de momentos delicados e frágeis, onde O’Shea demonstra uma maravilhosa capacidade para capturar sinédoques da vida. Por exemplo, quando Milo presencia uma possível agressão sexual à sua nova vizinha, a conversa seguinte, que os dois têm, está marcada por uma resignação que mostra à audiência, sem gritar ou expor diretamente, quão este tipo de ambiente tem sido uma constante na vida das personagens. Outras ocasiões semelhantes, focam-se na relação fraternal de Milo e o seu irmão mais velho, onde pequenos comportamentos e reações revelam uma tapeçaria de conflitos e experiências vividas em conjunto de um modo brilhantemente subtil.

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No final, The Transfiguration revela-se como uma obra cheia de preciosidades que, por vezes, têm a sua luminosidade ofuscada pela intensidade de alguns graves passos em falso. Para fãs de terror puro e duro, este filme será muito provavelmente um soporífero, mas, para quem procurar um retrato original de uma comunidade afro-americana nova-iorquina e de um jovem que leva perigosamente a sério os mitos de vampiros, então este filme tem muito para oferecer e deleitar. Mesmo o seu derradeiro, e já criticado, momento consegue conter uma valente carga emocional, em parte porque Milo é uma personagem de inegável fascínio, mistério e palpável dor que, não invalidando o horror das suas ações assassinas, lhe conferem uma hipnotizante complexidade e comando sobre as audiências no cinema.

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O MELHOR: A reflexão que O’Shea faz sobre o poder, e perigo, do cinema e da ficção enquanto objetos culturais, influenciadores de mentalidade e fontes de escapismo.

O PIOR: A personagem de Sophie, a nova vizinha e interesse romântico de Milo, cuja presença consome muito do filme e que, para sermos brutalmente honestos, poderia ser retirada por inteiro da narrativa sem se perder grande coisa. Na verdade, apenas os rasgos de insegurança ou jovialidade adolescente expressos por Milo com a sua nova namorada seriam perdas trágicas para o filme.


 

Título Original: The Transfiguration
Realizador:  Michael O’Shea
Elenco: Eric Ruffin, Chloe Levine, Aaron Clifton Moten,  Jaquan Kelly
MOTELx | Drama | 2016 | 97 min

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