Thelma, em análise
“Thelma” explora os horrores e desejos de uma jovem assombrada por poderes misteriosos que ameaçam destruir aqueles que ela mais ama, mas que também poderão ser a chave para a liberdade absoluta.
O sobrenatural é um ótimo veículo para se explorar as dores do crescimento em cinema. Ainda este ano, no Queer Lisboa, vimos uma rapariga a transformar-se em sereia como metáfora para as dificuldades de passar da meninice a um corpo, mente e desejos adultos. Esse filme, “Blue My Mind”, integra uma longa tradição de exercícios metafóricos que transmutam os horrores da adolescência em visões saídas do folclore e do pesadelo. A uma primeira análise, “Thelma” parece seguir o mesmo modelo, mas a quarta longa-metragem do cineasta norueguês Joachim Trier é muito mais que uma reinvenção escandinava de “Carrie”.
De facto, esse clássico de angústia adolescente de Brian De Palma, tem vindo a suscitar muitas comparações com o filme de Trier e, a avaliar pela primeira metade da narrativa, tal relação é mais do que justificada. Afinal, Thelma é uma jovem com uma educação severamente religiosa que começa a desenvolver poderes misteriosos com potenciais violentos. O despertar dessas habilidades coincide com o seu despertar sexual aquando do início dos estudos superiores numa cidade longe da família. Aqui o advento da sexualidade não vem por meio da menstruação, como em “Carrie”, mas pelo florescer de desejos inesperados face a uma colega atraente que captura a atenção de Thelma.
Em termos narrativos e temáticos, “Thelma” parece ser uma obra de fácil leitura, até pecando pela previsibilidade e pelo cliché, até que o objeto dos desejos da protagonista é violentamente excisado da narrativa. A partir daí, o filme afunda-se num denso oceano de metáfora e símbolo, onde a estrutura da narrativa passa de uma história de auto-descoberta a um mistério mesclado com travos de terror e crítica social. Questões religiosas, explorações de controlo parental face ao perigoso desconhecido, o veneno do medo, o fulgor do desejo, as mágoas de uma adolescente conservadora a provar o fruto proibido pela primeira vez e carradas de simbolismo animal pintam o filme de modo caótico.
Imagine-se que “Thelma é uma tapeçaria a ser tecida diante dos nossos olhos. Ao início, Trier parece estar a seguir uma metodologia comum e entendível, usando poucas fibras e cores na sua construção. Contudo, à medida que o enredo se vai revelando, ele cai na loucura da ambição e acrescenta mais e mais fios, mais cores, mais motivos e fibras, até que a simplicidade do início é somente uma ilusão que escondia o miasma de incoerência febril com que o espectador é confrontado. Assim, este filme afirma-se como esse raro animal, mais procurada espécie entre o ecossistema de cinema falhado. “Thelma” é o filme que fracassa, não por incompetência ou falta de ideias. “Thelma” é uma tempestade descontrolada de ambição e ideias que não têm maneira de coexistir organicamente. É hubris e é glorioso.
Verdade seja dita, é também incrivelmente frustrante para o espectador que vai oscilando entre revirar os olhos face às soluções metaforicamente óbvias do texto e das imagens, irritar-se com a falta de disciplina e ordem no edifício fílmico e ficar de boca aberta face ao engenho deste mestre cineasta em ação. É dessa mesma insinuação de grandeza que vem a frustração, pois no meio do corpo disforme do filme, existe uma outra vida cinematográfica a querer afirmar-se e extasiar o público com a sua qualidade e observações sobre a protagonista em crise.
Como todas as protagonistas de Trier, Thelma é uma pessoa a passar por uma fase de transição que, de certo modo, se conjuga com uma confrontação com a sua liberdade pessoal, ou falta dela. Pela sua parte, Eili Harboe traz grande ambiguidade e ambivalência ao seu retrato de Thelma, mantendo o espectador à distância. Para muitos, essa barreira que nos impede de aceder a uma visão clara da interioridade da jovem será algo indesculpável. No entanto, há valor nas escolhas de Trier e sua atriz que sugerem algo inquietante quando nos propõe uma jovem que, acima de tudo, parece não ter identidade.
Talvez Thelma ainda não tenha descoberto quem é. Anja, seu foco de obsessão erótica e afetiva, certamente aparenta estar bem segura na sua identidade pessoal, o que não significa que o espectador veja nela mais do que uma cifra. Ela, tal como todas as outras figuras na periferia de Thelma, só existe em relação à jovem super-poderosa e não parecem ter grande substância para além dos seus papeis mecânicos na narrativa. Somente quando Trier deixa que o filme se desdobre em epítetos de desejo sublimado é que a figura de Anja ganha algum peso, isolada na escuridão, a beijar Thelma como uma criatura mística de tentação com promessas de libertação nos seus lábios.
Essa descrição do beijo perdido nas sombras não é nenhum exagero. Trier realmente constrói esse momento de êxtase num vácuo de negrura, se bem que esse é somente um dos seus muitos trunfos. Outro aspeto formal que merece atenção é a severidade composicional e cromática de “Thelma”. Tal como todas as outras obras do realizador, este é um exemplo supremo de austeridade escandinava dominada por linhas arquitetónicas modernistas, imagens com pouco contraste, pequena profundidade focal e uma paleta dominada por gradações de cinza, tão constantes que são quase opressivas.
Opressividade é uma qualidade (ou defeito) comum a quase todo o edifício cinematográfico de “Thelma”. A densidade concetual que tanto resvala em incoerência e indisciplina oprime tanto como espanta. A indefinição deliberada das prestações tira-nos uma âncora humana à qual nos poderíamos agarrar e pesa sobre o espectador como uma bigorna feita de alienação e desinteresse. Da história e seus horrores, seus milagres e reviravoltas infernais contadas com a solenidade de um sermão calvinista nem se fala. “Thelma” é um delírio anestesiado, uma canção de angústia juvenil e devaneio sobrenatural cantada em sotto voce. Não é um filme para todos, mas quem queira perscrutar os seus mistérios há de encontrar glória mesmo nos seus fracassos, pois eles são fruto da ambição de um artista e isso é algo que merece sempre ser apreciado e aplaudido.
Thelma, em análise
Movie title: Thelma
Date published: 4 de October de 2018
Director(s): Joachim Trier
Actor(s): Eili Harboe, Kaya Wilkins, Henrik Rafaelsen, Ellen Dorrit Petersen, Grethe Eltervåg, Marte Magnusdotter Solem, Anders Mossling
Genre: Drama, Fantasia, Terror, 2017, 116 min
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Cláudio Alves - 65
CONCLUSÃO
“Carrie” por vias escandinavas com toques da história de origem de uma superheroína lésbica. Assim é “Thelma” antes de se enveredar por uma floresta cheia de símbolos, metáforas e ideias variadas que acabam por resultar na desorientação tanto do filme como do espetador. Joachim Trier continua a ser um dos cineastas mais fascinantes da Europa, mesmo que o seu repertório seja crescentemente irregular em termos de qualidade. A sua ambição, contudo, é sempre alta e bem visível.
O MELHOR: O beijo perdido nas trevas e outros exemplos de ingenuidade formal. Com isso dito, cuidado com o uso de strobs e flashes ao longo do filme, pois podem causar ataques epiléticos.
O PIOR: Todo o cansativo e muito banal simbolismo animal. Os efeitos especiais que denotam uma certa falta de orçamento não ajudam a valorizar este aspeto das manifestações sobrenaturais.
CA