Entre protestos e palmas, Tom Cruise e McQuarrie celebram o cinema que desafia limites | Diário do Festival de Cannes 2025 (Dia 5)
O Festival de Cannes 2025 está a ser tudo menos previsível. Entre protestos laborais, críticas ferozes à seleção oficial e discursos inflamados, a Croisette fervilha de tensões e emoções. No meio da ebulição, um encontro especial captou a atenção de todos: o realizador Christopher McQuarrie partilhou bastidores, ideias e metáforas sobre a arte de fazer cinema, quando, a meio da conversa, surge Tom Cruise — parceiro inseparável na saga Missão: Impossível. Um momento raro, inesperado e cheio de energia, que reavivou o fascínio pelo cinema feito com risco, respeito e reinvenção.
Um festival que arde por dentro: críticas, protestos e declarações
Cannes 2025 abriu com pompa, mas a festa rapidamente deu lugar à tensão, mesmo com os sorrisos de Tom Cruise. A comédia musical Partir Un Jour, de Amélie Bonnin, inaugurou o certame com aplausos divididos. Enquanto alguns elogiaram a leveza e a nostalgia da narrativa, a crítica britânica foi implacável — o The Guardian e o Daily Telegraph deram apenas uma estrela ao filme, apontando-lhe um “romantismo plastificado”.
A pena suspensa para Depardieu
O ambiente aqueceu com a reação ao caso Gérard Depardieu, recentemente condenado a pena suspensa por agressões. Juliette Binoche, presidente do júri, afinal não evitou o tema: “O tempo da impunidade acabou. O cinema tem de olhar-se ao espelho.” Esta frontalidade marca uma nova era para o festival, historicamente discreto nestas questões.
A democracia segundo De Niro
Ainda no campo das declarações contundentes, Robert De Niro recebeu uma Palma honorária e não perdeu tempo: atacou Donald Trump, alertando para a “normalização do autoritarismo” e apelando a uma defesa ativa da democracia. Aplaudido de pé, o ator provou que Cannes continua a ser um palco político por excelência.
Bastidores em ebulição: crítica especializada vs. influencers
O festival vive também uma tensão nos bastidores. Críticos de cinema denunciaram a exclusão crescente dos espaços de acesso privilegiado, em detrimento de influencers e criadores de conteúdo digital. Por exemplo, Tom Cruise deu as entrevistas de Missão: Impossível – O Ajuste de Contas Final, em Londres, antes do Festival. Marco Consoli, fundador do International Film Festivals Journalists, lamentou: “Estamos a perder o espaço para o debate profundo. O festival está a transformar-se num espetáculo de superfícialidade.”
Manifestações na passadeira vermelha
Entretanto, trabalhadores e freelancers manifestaram-se na passadeira vermelha, exigindo contratos dignos e condições de trabalho justas. Um protesto silencioso, mas visualmente marcante, que revelou a insatisfação de quem mantém o festival a funcionar nos bastidores, para além da presença das estrelas, onde este ano Tom Cruise, parece concentrar todas as atenções nesta primeira semana de Festival.
Christopher McQuarrie: escrever, realizar e mover montanhas
No meio deste turbilhão, o encontro com Christopher McQuarrie ofereceu um raro momento de introspeção cinematográfica. O realizador partilhou o seu percurso pouco convencional: começou como argumentista (autor de Os Suspeitos e Operação Valquíria), e só depois assumiu a realização. “A indústria acha que um sucesso de 5 milhões prepara-nos para liderar um orçamento de 200. É uma ilusão perigosa”, confessou, com franqueza. Sobre o ofício, usou uma imagem reveladora: “Escrever é empurrar uma pedra montanha acima. Realizar é deixá-la rolar. E quanto maior o orçamento, mais pesada é a pedra.” McQuarrie vê o cinema de ação como um trabalho de precisão, onde cada decisão conta — técnica e emocionalmente.
Entrada surpresa: Tom Cruise e a arte do medo
Quando menos se esperava, Tom Cruise entrou em cena. O auditório aplaudiu de pé. Sem confirmarem se Missão: Impossível – O Ajuste de Contas Final será o capítulo final da saga, Cruise e McQuarrie falaram da importância de manter a integridade artística mesmo num mundo de blockbusters. “Não espero por autorização para criar. Faço. Mesmo que falhe”, disse Cruise, visivelmente entusiasmado. O ator confessou viver alimentado pelo medo — mas não um medo paralisante, antes um motor criativo. “Gosto da sensação de estar no limite. É isso que me faz crescer. O medo dá-me energia.” McQuarrie confirmou: “Quando filmamos juntos, não há espaço para o fácil. Tom obriga-nos a pensar cada cena como se fosse a última.”
De Chaplin a Cruise: o cinema clássico e a reinvenção
A sessão foi também uma celebração do cinema do passado. Cruise partilhou o seu amor pelos grandes planos e pela fisicalidade do cinema mudo, enquanto McQuarrie sublinhou a importância de exibir mais clássicos em streaming. “Adoro Piratas das Caraíbas, mas há toda uma geração que nunca viu Rio Bravo ou A Regra do Jogo”, lamentou. A exibição restaurada de A Quimera do Ouro, de Charlie Chaplin, com a presença de dois netos do cineasta, como já tinha-mos dito, emocionou a audiência e reforçou a ideia de que a história do cinema é um património vivo — e deve ser visto, não apenas reverenciado.
Cannes 2025 entre ruptura e reinvenção
O Festival de Cannes 2025 mostra-se como um reflexo do nosso tempo: cheio de tensões, contradições, protestos e paixão. Enquanto alguns lutam por espaço e dignidade, outros renovam o amor pelo cinema com ideias, coragem e riscos, como Christopher McQuarrie e Tom Cruise. Entre todos, uma certeza persiste — o cinema continua a ser um campo de batalha simbólico onde se negoceia o futuro cultural do mundo. E é precisamente aí que reside o seu poder.
JVM