“Urchin-Pelas Ruas de Londres” – Análise
“Urchin – Pelas Ruas de Londres”, de Harris Dickinson, mais do que se ver, é um filme que sente-se na pele. Um murro silencioso, realista, humano, daqueles que continuam a latejar muito depois do genérico final. Estreou no LEFFEST há dias, chega agora às salas de cinema.
Harris Dickinson estreia-se atrás das câmaras em “Urchin – Pelas Ruas de Londres” com punhos fechados e coração exposto. Há filmes que tentam o realismo apenas porque enchem o plano de grão, câmera nervosa e um personagem a fumar na varanda. Pelo contrário, “Urchin – Pelas Ruas de Londres” é realista porque nos dói na pele. Porque fede a albergue, a chá frio, a colchão húmido. Porque acompanha um homem perdido com a dignidade rota, mas ainda com um coração que insiste em bater, mesmo quando tudo à volta o empurra para o colapso. A estreia na realização de Dickinson — actor que muitos descobriram em “O Triângulo da Tristeza” — não é apenas promissora: é uma chapada de cinema social com punhos de veludo. E com Frank Dillane no centro, revelação daquelas que só o Festival de Cannes costuma oferecer quando escolhe bem. O festival deu-lhe o Prémio de Melhor Actor na secção Un Certain Regard de 2025.

O homem que sabe sorrir antes de o derrubarem
Em “Urchin – Pelas Ruas de Londres, Frank Dillane é o jovem Mike, sem-abrigo londrino, desses que pedem moedas que já ninguém traz nos bolsos desde que o ‘contactless’ virou religião. Vive há cinco anos a dormir onde calha, improvisando a sua existência a partir de esmolas, pequenos roubos e pratos de sopa oferecidos por caridade, palavra essa que assusta mais do que o frio. Mike não é santo nem mártir: é humano, demasiado humano e frágil. Há nele uma debilidade que não pede desculpa; e de uma inteligência de sobrevivência que nunca chega a salvação. É nervoso, instável, magnético, talvez bipolar. Dillane interpreta-o com o corpo inteiro, como quem carrega nos ossos as memórias que o filme não conta mas a câmara adivinha. O sorriso é meio pedido de ajuda, meio ameaça involuntária, o rosto de quem já viu demasiadas portas fecharem-se antes do seu nariz e, por isso, sorri primeiro para não ser empurrado outra vez.
VÊ TRAILER DE “URCHI-PELAS RIAS DE LONDRES”
Londres não é postal mas organismo vivo
Dickinson, que surge também como actor em “Urchin – Pelas Ruas de Londres”, num pequeno (mas decisivo) papel, filma Londres como animal urbano: frio, indolente, indiferente. Nada de postal turístico, nem Hampstead Heath ao pôr-do-sol visto do drone. São as ruas onde o turismo não passa, as esquinas que cheiram a derrota, pubs onde ninguém nota se alguém está a cair de bêbado ou a dormir. A cidade é personagem silenciosa e cúmplice: bonita de longe, violenta de perto. A Londres real, aquela que existe, mas que nunca vemos quando compramos os ímanes com o Big Ben.

Três passos em frente, dois para trás
“Urchin – Pelas Ruas de Londres” segue o movimento espiralado de Mike: prisão, reabilitação possível, trabalho numa cozinha de hotel, uma quase nova vida. Dickinson arma-se em optimista ocasional, oferecendo ao protagonista a hipótese de recomeço, com supervisão judicial, terapia e pequenas vitórias, como até comprar um presente de aniversário para a técnica de reinserção. Mas a vida real não tem arco ascensional contínuo. Tem desvios. Tem quedas. Tem ketamina dada por amigos que são tudo menos cura. A câmara não julga observa. Com compaixão mordaz. Como quem sabe que ninguém sai do fundo apenas porque quer muito sair. Falta o resto: estrutura, apoio, sorte. E isso, convenhamos, não está disponível para todos.

Pedir desculpa também é um abismo
Há uma sequência que cristaliza o espírito de “Urchin – Pelas Ruas de Londres”: a sessão de justiça restaurativa com a vítima do assalto. Um momento supostamente pedagógico, purificador. Só que Mike não sabe pedir desculpa. Nunca aprenderam a linguagem emocional que o mundo lhe cobra. Repetimos a vida toda que todos merecem segunda oportunidade, mas ninguém ensina o manual de uso quando ela chega. O desconforto é tão real que ouvimos o ranger do atrito humano entre querer ser melhor e não saber como fazer ou fazê-lo de uma forma atrapalhada.
Um actor em combustão e o futuro está ali
Frank Dillane carrega “Urchin – Pelas Ruas de Londres” com intensidade eléctrica. É físico, febril, comovente, perigoso. A verdade que põe em cena dispensa enfeites, não há glamour de miséria para festival, há carne viva. Não existe ali para fazer o espectador sentir superioridade moral, mas para lembrar que a queda não é metáfora: é uma pessoa. Dickinson, por seu lado, revela mão firme na mise-en-scène e um olhar compassivo sem paternalismo. Não filma pobreza para decoração: filma para incomodar. E ainda bem.

Quando o drama se ri, mas continua ferido
Em “Urchin – Pelas Ruas de Londres”, há humor. Surreal. Porque o absurdo também mora na rua. Porque um homem quebrado pode cantar Atomic Kitten em karaoke com convicção absurda e transformar desgraça em festa breve. É este desequilíbrio que impede “Urchin – Pelas Ruas de Londres” de ser mais um drama social cinzento. É um filme que respira, tropeça, recomeça, como Mike. O mérito maior talvez seja esse: a narrativa avança como quem tenta reorganizar a vida: três passos em frente, dois para trás. No fim, não há respostas fáceis. Nem finais felizes com fita vermelha. Londres continua gigante, fria, indiferente. Mike continua demasiado humano para caber num slogan motivacional. Nós, espectadores, sentimos o desconforto, aquela intuição terrível: podia ser qualquer um de nós. Bastava um virar de esquina mal dado. Teve estreia mundial na secção Un Certain Regard do Festival de Cannes 2025. Foi aí galardoado com dois prémios: Prémio Melhor Actor e Prémio FIPRESCI (Crítica) Melhor Filme. Tem agora 6 nomeações aos British Independent Film Awards (BIFA) e uma ao Gotham Awards.
JVM
Urchin-Pelas Ruas de Londres – Análise
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José Vieira Mendes - 80
Conclusão:
“Urchin – Pelas Ruas de Londres”, de Harris Dickinson, é cinema que não pede desculpa por existir. Uma estreia com rigor, ferida aberta, verdade exausta. E Frank Dillane consagra-se, não como estrela polida, mas como actor de sangue quente, daqueles que transformam uma obra em experiência. Um retrato duro, por vezes perversamente belo, de quem tenta sobreviver sem que o mundo se lembre dele. Se esta estreia é promessa, Dickinson cumpre-a logo à primeira. Venham mais, mas assim: sem filtros, sem piedade, sem medo de olhar a rua nos olhos. Porque às vezes o cinema deve mesmo cheirar a asfalto.
Overall
80User Review
( votes)Pros
O melhor: Frank Dillane em interpretação de nervo exposto; realismo sem artifício; Londres filmada como corpo vivo; humor trágico que impede sermão social.
Cons
O pior: Quem espera redenção ficará desapontado; há momentos que fisicamente doem a ver e ainda bem; o ritmo irregular poderá afastar quem exige drama “arrumado” com laço no fim.


