Veneza 74 (1) | O Mundo é Pequeno

 

O realizador norte-americano Alexander Payne abriu hoje o festival e a competição  oficial, com Downsizing, uma comédia distópica e futurista sobre um mundo pequenino, e protagonizado por Matt Damon. A competição da secção Horizonte abriu com Nico 1988, da italiana Susanna Nicchiarelli, um relato ficcionado sobre os últimos anos de vida, de Nico, a musa da pop art, cantora e vocalista dos Velvet Underground.

 

Depois de Sideways e Nebraska, dois filmes que valeram a Alexandre Payne dois Óscares de Melhor Argumento, e de quatro anos sem filmar, o realizador de Omaha (precisamente no estado Nebraska), regressou ao Lido com Downsizing, uma comédia agridoce, política e épica com um elenco notável e que abre praticamente com um cameo do actor português Joaquim de Almeida. De facto a maioria dos protagonistas, a começar por Matt Damon, no papel de um ‘everyman’, não têm mais do que doze centímetros.

 

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A equipa do filme, ‘Downsizing’, Payne, Damon, Wiig , na conferência de imprensa.

 

A ideia de Downsizing  — quase como sempre marcada por um humor paradoxal —, nasceu da cabeça de Doug, irmão do realizador e de Jim Taylor, seu habitual colaborador na escrita de argumentos: para melhor enfrentar a crise e preservar os recursos passa por diminuir para uns poucos centímetros a humanidade.

 

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Matt Damon e Kristen Wiig , são um casal cinzentão de Omaha.

Payne parte de estereótipo de um ‘cinzentão’ casal de Omaha, Paul (Matt Damon) e Audrey Safranek (Kristen Wiig), para esta história um pouco louca, em que ambos decidem participar duma experiência de ‘miniaturização’, criada na ‘asséptica’ Noruega e iniciada nos EUA, para tornar 3% da população mundial mais pequena, e poder-se melhor enfrentar as grandes questões mundiais do momento: o aumento populacional, o esgotamento dos recursos e as mudanças climáticas. Naturalmente as coisas não vão acontecer como o previsto nessa nova sociedade, mas o filme — faz lembrar um pouco Truman Show — não é apenas uma comédia absurda e distópica sobre um admirável novo mundo.

 

Vê trailer de ‘Downsizing’

 

Downsizing oscila entre o humor inteligente, a reflexão sobre a nossa condição humana, a ecologia, a defesa do ambiente, as mudanças climáticas, numa América de Trump, que se recusou a assinar o protocolo de Paris sobre o Clima. Portanto não podia ser mais oportuno para abrir Veneza 74. Mas o filme, sem ser uma obra-prima torna-se numa brilhante e divertida fábula sobre a ética e numa história de amor que defende a ideia de que não há sociedades ou sistemas políticos perfeitos, mas que é possível e desejável até para o planeta, que vivamos de uma forma mais solidária e menos egoísta. Para além da interpretação notável de Matt Damon, — e muitos cameos como o de Laura Dern ou Neil Patrick Harris, entre outros — a grande surpresa é Hong Chau (Vício Intríseco), a actriz norte-americana de origem asiática, que é a grande figura feminina do filme ao interpretar uma activista política vietnamita, que tem um monólogo sobre o amor que se destaca e vai ficar na história do filme.

E depois um inesperado Christoph Walt  — bem à imagem dos seus personagens nos filmes de Tarantino — no papel de Duzan, um traficante sérvio, vizinho de cima de Damon na famosa Leisureland, essa tal minúscula comunidade residencial, cercada por um muro, localizada no Novo México, criada à imagem de Lilliput e onde vivem esses Minúsculos — que depois de passarem por um asséptico processo de miniaturização — vivem aparentemente mais felizes que no mundo real.  Mais um filme a piscar o olho à corrida aos Óscares.

 

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A dinamarquesa Trine Dyrholm é Nico.

AGONIA DA CHELSEA GIRL

A multi-talentosa, modelo, actriz e cantora alemã Christa Pägen, mais conhecida por Nico foi uma estrela (ver também o documentário Icon Nico, de Susanne Ofteringer,1995), numa época dourada para as artes, mas sua vida foi marcada pelo vício e pela fatalidade. Em Nico 1988, a realizadora Susanna Nicchiarelli, filme que abriu a Horizontes, faz-nos reviver, embora de uma forma ficcionada a triste história de Nico, e dos seus últimos dias. Em Nico 1988 é a cantora e atriz dinamarquesa Trine Dyrholm (Urso de Ouro de Berlim em A Comuna de Thomas Vintenberg) e uma das mais cotadas intérpretes europeias que se transforma na pele, corpo, alma e voz da famosa ícone da cultura pop dos anos 70.

 

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A bela Nico foi a musa de Andy Warhol.

 

Curioso é que a história que Susanna Nicchiarelli conta e bem de uma forma até arriscada, em tom de documentário não é exactamente a mais conhecida de todos e das enciclopédias musicais. Neste filme Nico, a modelo, actriz, amante de Jim Morrisson — e de tantos outros grandes músicos, — e famosos com Alain Delon, do qual aparentemente teve o filho Ari — nunca reconhecido pelo actor mas que colabora na escrita deste filme — a vocalista dos Velvet Underground, a actriz de Doce Vida de Fellini ou Chelsea Girls de Andy Warhol e também sua musa, mostra-nos com imensa sinceridade o que foi como mulher, mãe e actriz e aquilo que na verdade gostaria de ter sido.

 

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O pretexto é a ultima tournée europeia da cantora.

 

O pretexto é a sua última tournée europeia, em que munida de um gravador, faz igualmente uma viagem de auto-destruição, resistência e afirmação musical a solo, nos finais dos anos 80, por Paris, Praga, Nuremberga, Manchester, e pelo litoral romano, até ao reencontro com o filho Ari, desintoxicação, até que sentiu a necessidade de parar na sua casa de Londres. É nesse momento de pausa e redenção que vai encontra a morte aos 49 anos de idade, numas férias em Ibiza, depois de uma queda de bicicleta e por falta de assistência médica. Nico 1988 é uma belíssima homenagem e um excelente retrato de uma artista total de todos os tempos que teve um trágico destino.

José Vieira Mendes

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