A Vida de Pi, em análise
Convém deixar bem claro, desde já, duas coisas importantíssimas. Primeiro: a certeza de que poderão ser necessários, para os mais sensíveis, resmas de lenços de papel para segurar a comoção mais do que legítima. Segundo: prepare-se para a ressaca visual, porque “A Vida de Pi” é daqueles filmes que têm o condão de deixar os nossos olhos mais brilhantes do que diamante e o poder de levar a nossa mente numa jornada visualmente arrebatadora.
Desde muito cedo que Pi (sob alçada da interpretação dos fabulosos Suraj Sharma e Irrfan Khan) revela que não pretende que acreditemos na sua triunfante estória. Espera apenas que tenhamos o dom de a escutar com a devida atenção. Porque isso será suficiente para que no fim saibamos decidir entre crer na veracidade e espiritualidade desta aventura, ou escolher a via da realidade imediata e ignorar toda a sua misticidade.
“A Vida de Pi” leva-nos numa viagem pela descoberta do divino e nunca revela preciosismo excessivo. É, aliás, uma apresentação incomum da imagem cinematográfica de Deus: o ser que aqui assume várias identidades, conforme as diversas religiões, mas que fala e age em uníssono. Provavelmente cola-se à temática de “A Árvore da Vida”, na abordagem que faz da utilidade da fé e da existência da dúvida, mas contorna esse fio narrativo de uma forma mais terna e emocional do que metafísica.
E a vida do inabalável Pi Patel é uma miscelânea de emoções e crenças, e é marcada por uma coragem interminável que se alia a uma habilidade psíquica para sentir os sinais da sobrevivência em cada esquina.
Pi é colocado na imensidão do Oceano Pacífico com uma hiena, um orangotango, uma zebra ferida e um tigre de Bengala, após o naufrágio do navio cargueiro que vitimou a sua família e a grande maioria dos animais do seu Zoo que iam a bordo. E é perante a infelicidade da perda e a luta para descobrir os vestígios da existência de um Deus vigilante que Pi descobre que a sua eventual sobrevivência está intrinsecamente ligada a uma triunfante conexão com Richard Parker, o tigre de Bengala.
A virtuosidade de Ang Lee emerge na capacidade de tocar o espectador, seja pela delicadeza com que nos relata a amizade bela entre um rapaz perdido no seu próprio mundo, e um animal sedento de livre-arbítrio, seja na forma como é capaz de exteriorizar essa beleza interior para cenários majestosos. Estamos a falar não só de um dos filmes mais emocionantes dos últimos tempos, como um dos filmes visualmente mais estonteantes de que há memória.
Poder-se-á falar quase em perfeição técnica. A harmónica (e belíssima) banda sonora intersecta paisagens oceânicas ora quentes e poderosas, ora cintilantes e mágicas. Os animais irrepreensivelmente construídos com auxílio de CGI conjugam-se com um 3D competente, tanto além como à frente da tela. A construção do naufrágio e a criação das tempestades marítimas auxiliam o argumento na sua aptidão para criar o desconforto. E tudo somado dá origem a um espetáculo brilhantemente encenado.
Se a nível visual não há falhas a apontar, no argumento há pontos menos positivos, mas que não são, de todo, capazes de diminuir a sua qualidade. Sensivelmente a meio sente-se o enfraquecer dos argumentos e a insistência cénica na iniciação da relação de Pi e Richard Parker, algo que causa um ligeiro adormecimento do fulgor inicial. Por outro lado, algumas das suas irrealidades e comoções poderão não convencer alguns espectadores (os mais ‘terra-a-terra’).
Mas o seu equilíbrio sustém a narrativa até ao final poderosíssimo que contrasta, ao nível afetivo, com o seu início. Um balanço exemplar entre a origem de Pi, apresentado de uma forma muito bem-humorada, e o fim da sua expedição na sua Arca.
A rendição a “A Vida de Pi” dependerá indubitavelmente da sensibilidade de cada um ao seu tema. Uma obra que não nos impõe uma visão do mundo e de Deus de uma única forma mas que dá liberdade total ao espectador em acreditar naquilo que decidir acreditar. E se decidir acreditar, ficará rendido.
DR