O vinil, a música e os meus alunos

Encorajada pelo progressivo aumento, nos últimos anos, das vendas de discos em vinil, Jennifer Bickerdike lança-nos, em Why Vinyl Matters, à descoberta do valor deste formato.

O vinil e os meus alunos

Uma aula de trabalho pessoal. Os meus alunos tinham de ler um texto de bibliografia secundária sobre o doce estilo novo, usado por Dante na Vida Nova, e a sua reformulação por Petrarca. Deviam sublinhá-lo e tirar apontamentos de forma estruturada. Com quinze anos já não deviam pôr o braço no ar, pedindo que lhes resolva a primeira dificuldade que encontram. Mas fazem-no. Pelo que me lembrei de levar um dicionário para a sala. Não sabem o significado da palavra? Aqui está, procurem-no aqui. E deixei cair o bloco de dois quilos em cima de uma mesa vazia, o estrondo da queda a reverberar por mesas, paredes, corpos e vidros fora.

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A certa altura, por entre o silêncio do estudo, levanto os olhos do meu trabalho e vejo um aluno à espera que outro acabe de usar o dicionário. Levanta-se e percorre a sala para o ir buscar. Senta-se e abre-o, vai passando as páginas, parando ora numa, ora noutra, consoante as palavras que listara de antemão. Concentrado, o corpo inclinado sobre o dicionário, pesando pousado sobre as pernas cruzadas, com uma mão vai virando centenas de folhas para a frente e para trás, enquanto, com o lápis na outra, aponta no texto os significados.

Um ou outro perguntara se podia usar o telemóvel, recorrendo assim de forma mais rápida a um qualquer dicionário virtual, sem ter de esperar que os outros acabassem, sem ter de virar as páginas. Claro que sim, o fim em vista era cumprido e de forma até mais eficaz, eliminadas as constrições materiais. Ainda assim, não era a mesma experiência. O dicionário on-line é um link entre milhares de links, os três primeiros levando ao que se quer, os restantes levando, como hipótese sempre latente, qual fantasma contínuo, a todas as outras coisas que existem no cosmos. É preciso descortinar o significado entre imagens, caixas e publicidade que encrencam a página e competem pela atenção dos olhos. Não aquele aluno que eu via, ao fundo da sala, contido no universo cerrado da ação de perceber o texto, onde tudo, existindo em função dela, a ela reconduzia e nela o concentrava. Desligado da totalidade do mundo, estava totalmente ali. E a tarefa, cumprida toda até ao fim, sem distrações de permeio, pôde transfigurar o todo da sua pessoa.

Record Store Day (21 de abril 2018) | Third Man Records, Detroit

Este pequeno episódio levou-me a pensar sobre a importância do vinil. Constatei, há já alguns anos, que os meus alunos não têm o conceito de álbum. Wittgenstein tem toda a razão quando diz que, para aprender uma palavra, é preciso aprender uma linguagem e que só se aprende uma linguagem aprendendo uma forma de vida. Não é possível saber o que é um álbum sem aquele complexo de objetos, hábitos, instituições e comunidades afetivas de que o vinil é o centro. Enquanto o suporte materialmente mais excelente ou, pelo menos, historicamente mais significativo da obra de arte da música pop, o vinil acabou por se converter também no seu ícone mais emblemático. Pensar no vinil é trazer à mente toda a imensa e desenvolvida prática a que damos o nome de música pop.

O vinil e a música

Num mundo de ficheiros de áudio, playlists e serviços de streaming, quebrados finalmente os limites do objecto material, seja ele o vinil ou o CD, os meus alunos vivem paradoxalmente encerrados no seu gosto. A rádio alimenta e confirma um gosto por música imediata, criando a habituação e o embotamento próprios da fast food e conseguindo assim competir com os serviços de streaming. Quanto a estes, tornaram-se a autoritária ausência de autoridade: audiotecas grátis que, enquanto permitem aceder a tudo o que existe de precioso, esvaziam a aquisição de música das custosas transacções humanas que lhe davam valor; interligações infindáveis que fragmentam os álbuns pensados pelos artistas em playlists construídas ao gosto dos ouvintes; algoritmos complexos que geram sugestões em tudo aleatórias exceto no único princípio de só dar a conhecer o mais do mesmo.

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O exemplo do dicionário mostra qual o valor do vinil. Por ser o menos maleável dos suportes materiais do álbum, o vinil obriga a toda uma certa maneira de ouvir música sem a qual não se percebe o que a música é. Fora do mundo onde existem discos – e só existem discos onde há limites físicos – não há música como forma de arte mas apenas ruído agradável fácil de consumir e mais ainda de descartar. Paradoxalmente, tem-se vindo a assistir ao ressurgir do vinil, com a comercialização deste formato a evoluir estavelmente desde 2014. No Reino Unido foram lançados, em 2015, dois Tops (um de álbuns e outro de singles) dedicados especificamente às vendas de vinil. Em 2016, as vendas alcançaram um pico que não era atingido há já 25 anos. Foi também a primeira vez que o dinheiro despendido neste formato ultrapassou o gasto em downloads digitais (Why Vinyl Matters, pág. 11). A importância de uma iniciativa como a de Jennifer Otter Bickerdike está, antes de mais, em deixar-se intrigar por estas estatísticas, aceitando vê-las como sinais e lançar-se numa investigação para descobrir do quê. Mas está, acima de tudo, em ajudar, no processo, a compreender melhor o que é a música pop, em particular, e a arte, em geral.

vinil
Icónica capa do disco em vinil de Unknown Pleasures, de Joy Division, desenhada por Peter Saville, entrevistado no livro.

O vinil e Jennifer Otter Bickerdike

Why Vinyl Matters começou porque Bickerdike “estava obcecada com a música comercial, com a era de ouro da rádio AM da década de 70 – Journey, Hall and Oates, Rupert Holmes.” Há muito que um agente insistia com ela que escrevesse sobre essa época. Como Bickerdike gostava muito “de capas de álbuns e de toda a experiência de se afeiçoar à música via vinil”, o agente sugeriu-lhe que compusesse um livro sobre este suporte. Trata-se de uma antologia de entrevistas, feitas a inúmeras pessoas envolvidas, a vários níveis, com o meio do vinil, porque a autora “queria que resplandecessem a voz e experiência únicas de cada contribuinte”. Um formato adequado a quem vê a arte como um tecido de histórias pessoais, onde eventos concretos, o convívio com certas preferências e a realização de actividades, informais ou sistemáticas, se entrelaçam numa conversa interminável. Umas das questões que coloquei a Bickerdike foi precisamente acerca do critério de selecção dos entrevistados. A resposta foi, novamente, afectiva:

Seleccionei as pessoas fazendo uma lista daqueles com quem queria conversar, que julgava terem alguma coisa a dizer sobre vinil e álbuns. Por isso, suponho que se pode dizer que fui muito egoísta na maneira de escolher as pessoas! A minha taxa de sucesso foi um terço das pessoas que idealizara conseguir. Limitámo-nos a conversar amigavelmente sobre a nossa estima por este formato, que nos levou a entrar no jogo e gostar de música.

Why Vinyl Matters continua uma linha de investigação já seguida no doutoramento, cuja tese fora o fenómeno da admiração no mundo da música. “A admiração constitui uma grande parte da nossa identidade, quer se seja fã de um artista, uma equipa ou elefantes”, explica-me. “O vinil e o coleccionismo associados a artistas específicos tiveram, durante décadas, um papel fulcral na formação dos meus valores, ética e visão do mundo.” E confessa: “Este livro é, na verdade, apenas uma extensão desse pecadilho pessoal e uma desculpa para confirmar que não estou sozinha na minha obsessão.” De onde nasce o livro? Do amor que Bickerdike tem à música. “Agarrou-me quando nenhuma outra coisa o fez, foi a minha confidente e terapeuta.” Que contributo espera que dê? “Se o meu livro conseguir que uma pessoa vá e pegue num LP, quando nunca antes pensara nisso, então o meu trabalho está feito.”

Capa da secção do livro dedicada ao fabrico do vinil
Capa da secção do livro dedicada ao fabrico do vinil

O vinil e finalmente Why Vinyl Matters

Que este livro nasça da afeição e a ela se dirija não tira nada à sistematicidade com que foi realizado. As entrevistas têm por base um questionário quase invariável, dirigido a aspectos desta matéria que, oscilando entre o candente e o pessoal, são sempre relevantes: porque é o vinil importante? qual o primeiro disco de vinil que comprou ou se lembra de pôr a tocar? qual a incidência do vinil na cultura musical? há realmente uma diferença entre a qualidade sonora do vinil e a do CD? o que levou ao desaparecimento do vinil e ao seu actual regresso? O questionário vai variando, claro, caso a caso, consoante a função desempenhada na indústria ou o género musical cultivado pelos entrevistados. Diferentes entre si, todos apresentam respostas (algumas verdadeiramente inspiradas) que se vão complementando, ou chegando mesmo a contrastar, permitindo a progressiva qualificação e aprofundamento técnico ou humano das questões que atravessam a obra. Bickerdike conseguiu criar uma conversa envolvente, cheia de perspectivas informadas pela larga experiência de cada participante, que o leitor comum consegue seguir, sem para isso precisar de especiais habilitações, e da qual sai com o olhar sobre o universo da música pop deveras transfigurado.

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Quanto às várias opiniões expressas ao longo do livro, ou até a conclusões que se possam retirar de certos consensos que nele se vislumbram, não me pronuncio. Também não vou sintetizar o que é esta certa maneira de ouvir que o vinil introduz, necessária à compreensão da música como transportando sentido e causando um prazer sofisticado e duradouro. Não desejo fazer o que a sua autora se coibiu de fazer, mediando entre o leitor e os músicos, DJs, desenhadores gráficos, editores, fabricantes, vendedores, etc., que aqui falam a partir da sua história única, pessoal e insubstituível. Ouçam-nos em primeira pessoa e aprendam com eles, se não aprenderam antes com os pais em casa, às escondidas deles com os irmãos mais velhos, ou com os amigos alternativos naquele canto da escola nunca visitado. Eu limito-me a voltar aos meus alunos, para lhes dizer porque importa que o vinil não desapareça, antes continue a aumentar, como tem vindo a acontecer nos últimos anos (já agora, o mesmo vale para os dicionários que dão cabo das costas e da paciência).

Os discos em vinil e, admitamos, os CDs até podem vir a ser substituídos, no dia-a-dia, pelos ficheiros de áudio e serviços de streaming. Mas é por eles – e toda a trama de relações afetivas que implicam – que é preciso começar para poder adquirir o conceito de álbum e o gosto por música. O relacionamento com estes suportes físicos ensina até a usar a imensa tecnologia hoje à nossa disposição e as maravilhosas audiotecas que são o i-Tunes, o Spotify e afins, quando são eles a serem usados por nós e não nós a sermos usados por eles. Sem educação não há liberdade, e não há educação (nem arte) onde não há pessoas ou limites. O meu obrigado a Jennifer Otter Bickerdike, e a todos aqueles que acederam a conversar com ela, por este Why Vinyl Matters, que constitui um passo nessa direcção.

O vinil, a música e os meus alunos

Book Title: Why Vinyl Matters: a manifesto from musicians and fans

Book Author: Jennifer Otter Bickerdike

Book Edition: ACC Editions

Book Format: Hardcover

Date published: 1 de October de 2017

ISBN: 185149863X

Number Of Pages: 224

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Um resumo

Lars Ulrich (dos Metallica), Fatboy Slim, Henry Rollins (dos Black Flag), Steve Hackett (dos Genesis), Peter Saville, Simon Raymonde (dos Cocteau Twins e fundador da Bella Union Records) e Nick Hornby (autor de “High Fidelity”) são algumas das personalidades envolvidas no mundo da música pop com quem a autora de Why Vinyl Matters conversa sobre o lugar do vinil na história e prática desta forma de arte. Uma conversa informal mas também informativa da qual se sai a pensar que, se calhar, não seria mau pedir um gira-discos de presente ao Pai Natal. E já para este ano.

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