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LEFFEST ’18 | Vox Lux, em análise

Vox Lux” chocou o Festival de Veneza e agora veio chocar o público português com a sua análise do século XXI através de um épico pop desfigurado. Este é um dos 11 filmes em competição no Lisbon & Sintra Film Festival deste ano.

Depois de ter tentado retratar o nascimento do fascismo através da história de um déspota em fictício do século XX em “A Infância de um Líder”, o ator tornado realizador Brady Corbet volta a aventurar-se numa pesquisa de temas históricos comprimidos num estudo de personagem. Com a sua segunda longa-metragem “Vox Lux”, ao invés das origens do totalitarismo no período pós 1ª Guerra Mundial, Corbet concentra-se nas maladias do século XXI, especificamente no que se refere ao papel da cultura pop na perceção que o mundo tem de si mesmo. Tal mudança temática também implica uma mudança radical de protagonista, sendo que, no lugar do filho demoníaco de um diplomata, “Vox Lux” apresenta-nos uma estrela pop nascida do sangue e da tragédia.

Tudo começa em 1999, em Staten Island, onde um jovem entra armado na escola secundária e abre fogo sobre uma professora e seus alunos. No meio da chacina que espelha o horror de Columbine, há uma sobrevivente. Ela é Celeste, cuja coluna ficou irreversivelmente afetada pelo trauma e que assim será para sempre atormentada por dores debilitantes. De olhos límpidos e rosto inocente, é o símbolo de toda uma inocência perdida para uma nação a confrontar o choque de crimes que, nos anos vindouros, se haveriam de tornar numa ocorrência tão comum que quase já nem desperta surpresa aos olhos do público. Se os assassinatos orquestrados pala família Manson marcaram o fim dos anos 60 e sua era cultural, então este evento assinala o berço do século XXI e o túmulo da época anterior.

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Um retrato do século XXI que começa com um tiroteio numa escola e acaba com uma missa pop à divina Celeste.

A própria linguagem codificada do filme assume o choque dos tiros como o fim de algo, desenrolando os seus créditos integrais como se a narrativa já tivesse terminado. Por detrás de tal gesto de indisputável finalidade, Celeste é levada para o hospital, a garganta jorra sangue e os seus olhos parecem os de um antílope que sente os dentes de uma leoa cravados na carne. Num futuro próximo ela irá cobrir as cicatrizes que lhe adornam o pescoço com gargantilhas de tule e aparatosos colares de plumas e licra metalizada. Seu sofrimento está condenado a transmutar-se em mais uma comodidade a ser capitalizada, o trauma é só mais uma ferramenta da máquina da fama à espera de ser assimilada.

No rescaldo imediato da tragédia, ainda não se regista o fausto desse futuro monstruoso. As cicatrizes ainda são cobertas por humildes ligaduras e a modéstia clínica de um colar cervical. É assim, com uma cadeira de rodas e um andarilho para apoio, que Celeste se apresenta numa missa de lembrança às vítimas do massacre e, com a ajuda da irmã, canta uma homenagem aos seus colegas. Suas letras precoces, mensagem de aparente sinceridade e um potencial pacto faustiano com Satanás garantem que as câmaras de TV capturem apaixonadas a performance da adolescente. Assim Celeste se torna na voz da tragédia, no ídolo da nação, ganha direito a um agente que a leva para a Escandinávia para gravarem os próximos fenómenos da pop americana e a umas quantas noites tórridas em clubes noturnos ou na companhia de um cantor rebelde. Assim nasce uma estrela.

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E assim, o filme salta para 2017 e substitui a sua Celeste por uma versão tremendamente diferente e desconexa, trocando a fragilidade ingénua de Raffey Cassidy por Natalie Portman num dos desempenhos mais maximalistas de toda a sua carreira. Se esta prestação fosse uma pintura, seria uma experiência de arte povera feita de pinceladas grossas em tintas fluorescentes e abençoada por Warhol. Não há aqui grande contenção e o sotaque de Staten Island é tão exagerado como a fisicalidade da personagem, o que vai levar muitos a denegrirem o trabalho como risível. No entanto, para outros, este será um esforço áureo e confessamos pertencer ao segundo grupo. Afinal, Portman está no seu melhor quando tem de dar vida a camadas sobrepostas de performance, como uma décollage humana e Celeste é o suprassumo exemplo dessa dinâmica na filmografia da atriz.

Depois da stripper que mostra a sua vulnerabilidade pelo meio das estilizações da performance erótica, da bailarina estilhaçada, da atriz política em recital de luto e um alien a interpretar impressões da humanidade, vem esta estrela pop narcisista e dramática. Esta diva que tanto coloca a máscara de estrela como de mãe devota e vítima quando a situação se propõe, ela que fez da sua intimidade mais um produto a vender a fãs enfeitiçados. Note-se, por exemplo, como Portman comanda uma conferência de imprensa com a rebeldia estudada de uma artista da controvérsia, mas, repentinamente, deixa-nos ver como a estrela pop se apercebe que uma das improvisações escandalosas foi um passo em falso. A maleabilidade expressiva de Portman fecha-se num instante introspetivo e é como se estivéssemos a ver os mecanismos performativos de Celeste a calibrarem.

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Prestem devoção a Celeste.

A pirotecnia performativa de Natalie Portman é tão extrema que ameaça ruir as fundações do filme em que existe, mas, à medida que as explorações temáticas de Corbet se revelam, a abordagem da atriz mais se manifesta como a única opção para dar vida a uma figura que é tanto ser humano como personificação de uma era. Celeste é um monstro da pop, um Messias profético nascido do sangue de inocentes que agora oferece fácil escapismo às massas ao mesmo tempo que reconhece nelas o vírus da ignorância. Ela define-se como uma divindade e de uma perspetiva Nietzschiana é difícil dizer que ela está errada. No mundo edificado pela sociedade de informação e pela Idade do Terror, a estrela pop matou Deus e ocupou o seu lugar, comandando os seus pequenos anjos em prece e devoção ao capital e à personalidade.

Se acreditarmos na tese do filme, esta viagem de Celeste é a odisseia humana do século XXI e “Vox Lux” é a sua assustada crónica ao som de hinos de Sia. Para Corbet, tentar falar do século XXI através de uma perspetiva histórica é como tentar pintar a óleo sobre uma tela embebida em diluente. A cada tentativa de construir uma imagem na superfície em branco, a tinta esfuma-se no preparado químico, o figurativo imparavelmente escorre no caminho da abstração, antes de sumir e para trás só deixar a miragem de um borrão. O século XXI é uma era de repúdio histórico, onde parece que a humanidade, em deliberada ignorância dos erros do passado, insiste em correr, cega e surda, para o mesmo abismo cujo precipício já em tempos caminhamos. Pintar um retrato histórico de algo alérgico a História é ver a pincelada obliterando-se a si mesma no diluente, é frustrante e é ingrato, mas nada disso impediu Brady Corbet de tentar resolver o impossível. “Vox Lux” é um filme impossível, mas existe. Cinéfilos prestem devoção, pois estamos perante um milagre.

Vox Lux, em análise
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Movie title: Vox Lux

Date published: 21 de November de 2018

Director(s): Brady Corbet

Actor(s): Natalie Portman, Raffey Cassidy, Jude Law, Willem Dafoe, Stacy Martin, Jennifer Ehle, Christopher Abbott, Maria Dizzia

Genre: Drama, Musical, 2018, 110 min

  • Cláudio Alves - 80
  • José Vieira Mendes - 60
70

CONCLUSÃO

Depois de “A Infância de um Líder”, Corbet continua a explorar História.Com “Vox Lux”, ao invés do passado, ele tenta diagnosticar o presente e talvez até afigurar os sintomas que chegarão à sua apoteose num prognóstico futuro. Natalie Portman é o seu messias do apocalipse pop e esta é a sua Bíblia com o Antigo Testamento em forma de Columbine refratada e o Novo Testamento como um concerto de hinos alienígenas.

O MELHOR: A loucura de Portman, que raramente arriscou o ridículo de forma tão audaciosa.

O PIOR: Tirando Portman, o casting do filme é uma confusão de incoerências pérfidas que só distraem, especialmente no que diz respeito à transição temporal que separa 2001 de 2017.

CA

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