Weyes Blood, Titanic Rising | em análise

Em Titanic Rising, Weyes Blood conquista o lugar entre os grandes da década, sintetizando a arte pop da década de 70 com uma força contemporânea toda sua.

Nenhum título poderia ser mais adequado ao lugar que o mais recente álbum de Natalie Mering, Titanic Rising, ocupa na sua discografia ou no atual contexto da música pop. O novo registo nunca abandona os géneros dentro dos quais se tem movido Weyes Blood (assim intitulou Mering o seu projecto a solo, inspirando-se no romance Wise Blood, de Flannery O’Connor). Com a sua voz desde sempre carismática e poderosa, continua a explorar o manancial da música pop das décadas de 60 e 70 do século passado, hábitos de audição adquiridos na convivência com a mãe, que ouvia Joni Mitchell e Jeff Buckley. Mas, embora seja fácil reconhecer um progresso até ao actual Titanic Rising, ainda assim este monstro de imponente e seguríssima beleza ergue-se bem acima das águas dos anteriores álbuns. E leva na popa a sua autora, que bem pode abrir os braços e proclamar-se rainha do mundo. Se o planeta for pretensão demasiada, não o será de certeza o ano nem, quem sabe, talvez mesmo a década.

WEYES BLOOD | “SOMETHING TO BELIEVE” AO VIVO

O anterior registo, Front Row Seat to Earth, de 2016, já sugeria muitas das direcções sonoras adotadas em Titanic Rising. Mas só aqui se cumprem num todo grandioso, cada canção uma coluna de contorno e ornamentação irrepetíveis, a seguir o seu caminho único verso a abóbada da catedral. O movimento ascensional é, aliás, uma boa imagem para a estrutura da maioria destes temas, que vão crescendo da estrofe para o refrão ou da introdução até à coda. Como se Mering não se cansasse de ilustrar musicalmente o seu desejo de “something bigger and louder than the voices in me/ something to believe”. Esta forma composicional é a regra adoptada ao longo de quase todo o álbum e confere à voz de Mering, pela primeira vez, o contexto de que precisava para revelar todo o seu potencial expressivo. Assumindo muitas vezes o tom épico ou nostálgico da música para filmes, tanto graças à orquestração própria da música pop da década de 70 como às melodias jazz dos musicais da época de ouro da MGM, o instrumental sublinha (mas sempre sem exagero ou redundância) o drama narrado liricamente: “You threw me out of the garden of Eden/ lift me up just to let me fall hard/ can’t stand being your second best”.

Seria um erro, contudo, pensar que a música de Weyes Blood se limita a glosar o passado. Culminando aqui a direcção tomada em Front Row Seat to Earth, o veio folk, por vezes psicadélico, que se sentia em álbuns anteriores é abandonado de vez, ao nível dos instrumentos, em prol de sintetizadores cada vez mais sofisticados. A sua voz de contralto assume confiante o primeiro plano, tendo percorrido léguas desde os devaneios etéreos e nebulosos do seu primeiro álbum de estúdio The Outside Room (2011) até ao controle expressivo, quase operático, de um registo nítido e melódico, ao estilo de uma Karen Carpenter, Carole King ou, claro, Joni Mitchell. São pertinentes as referências, feitas pela própria Mering, a Enya, já que ao estilo vocal pop da década de 70 acresce uma reverberação, um prolongamento ecoante, em ligado, das notas que lembram a cantautora irlandesa. Mas a grande novidade é mesmo o recurso a uma percussão electrónica minimalista, potente e de feição experimental. Quando conjugada com instâncias de música clássica vanguardista, como no caso da entrada do violino na coda de “Movies”, garante o lugar de Mering no pódio dos grandes cantautores desta década. Sem nunca perder o tom orgânico, a sonoridade em Titanic Rising adquire assim traços contemporâneos que ancoram firmemente as canções deste álbum no novo século, não obstante o desprezo de Natalie Mering pela música pop das duas últimas décadas.

TITANIC RISING | “MOVIES”

É claro que o título do álbum não é auto-referencial, a não ser na minha descrição dele. Desde o início da promoção do álbum que Weyes Blood tem dado inúmeras explicações da sua relação com o conteúdo temático das canções, do modo como Titanic Rising pretende sintetizar o fio que une e ordena tanto o teor lírico das várias canções, como a arte de capa. A sensação de iminente catástrofe que transpira por todos os poros do planeta, desde a destruição ambiental e a mentirosa ilusão cinematográfica até à desordem nas relações amorosas, é capturada nesta simples imagem retirada do filme de James Cameron que tanto impressionou a jovem Mering. “Consigo sentir a dor do mundo”, disse ela à Vice. E é dessa dor que Weyes Blood se faz porta-voz, por meio da vivência pessoal do drama que é de todos.

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Em “Movies”, num andamento lento, mas subliminarmente agitada por linhas de sintetizadores, a melancólica e desejosa melodia vocal exprime, num crescendo contínuo, a relação contraditória de Weyes Blood com o cinema e as suas ilusões. Por um lado, o fascínio do amor tal como surge nos ecrãs, a promessa de uma aventura expressa tão convincentemente nesta forma de ilusão que os livros foram votados ao esquecimento. Weyes Blood não consegue negar o poder que todos estes fantasmas tiveram na sua educação: “Why did so many/ Get a rise out of me?/ I love the movies”. Por outro lado, diz-lhe a razão que, na sala escura, é por simulacros que nos apaixonamos, vivendo os sentimentos daqueles que não existem. Uma suspeita de que a vida não valha realmente a pena vibra no interior de toda esta prática: “The meaning of life doesn’t seem to shine like that screen” e “the movies I watched when I was a kid/ the hopes and the dreams/ don’t give credit to the real things”. Mas o estridente e acre violino, ao estilo de Steve Reich, acompanhado da inesperada e agressiva percussão, retira-nos da flutuante e dulcificada textura, onde qual placenta cinematográfica estivéramos imersos até então, para nos introduzir na coda da canção. Nela, a voz explosiva de Weyes Blood resolve a contradição, exigindo uma glória tão ou mais intensa do que a prometida pelos desejos de luz projectados na tela mas vivida na carne real de que é feita: “I wanna be in my own movie/ I wanna be the star of mine/ of my own”.

Também em “Everyday” a consciência pessoal da artista traz à consciência colectiva um sentimento profundo que condiciona o ser e agir de todos. Desta feita é o medo da solidão que cada um esconde no íntimo do subconsciente e está na origem de formas desesperadas de relação como os encontros ou a conversação ininterrupta pela internet. Chegada à hora de realizar o vídeo, a única imagem que Mering encontrou para este impulso de se ligar às redes sociais cada cinco minutos foi a de um filme de terror slasher: “É na realidade muito isolador. De certo modo, é um impulso que leva a um beco sem saída” (Pitchfork). Sem tédio não pode haver criatividade ou profundidade, nem na arte nem no amor. O andamento rápido e animado da canção evoca a festa e o frenesim do desejo de ser amado que leva às novas formas efémeras e instáveis de relação. Não é que a monogamia tenha desaparecido, até porque “true love is making a comeback”. Mas “for only half of us”, já que a outra metade se comprometeu (talvez para a vida) com a sua liberdade de movimentos e individualismo, “o que torna as relações diversas e mais duras” (Stereogum).

TITANIC RISING | “EVERYDAY”

Uma esperança atravessa, no entanto, esta imagem do cosmos prestes a soçobrar. As águas que submergem o espaço íntimo do quarto, em cujas paredes colamos os cartazes dos ídolos, ou a tela escura, onde projectamos os sonhos e desejos, representam o subconsciente onde lateja a carência de arquétipos que elevem a vida e a orientem: “Para mim [o quarto] simboliza muita da tontice da nossa cultura moderna onde o tipo de coisas que adoramos nos nossos espaços sagrados se baseiam nos media e em filmes, porque não temos muito mais do que isso no que respeita a mitos”. Na sua pobreza, estas ilusões afirmam pelo menos a necessidade humana de “looking up to the sky for something I may never find”.

O mesmo álbum que retrata a catástrofe de uma sociedade a afundar abre com uma canção onde Mering se dirige à sua versão jovem, sossegando-a e prometendo-lhe que a vida será bela, uma vez transcendidas todas as ilusões. E, logo a seguir, mesmo antes de nos atirar para o destroço afectivo de “Everyday”, Mering evoca a luz da possibilidade de um amor verdadeiro que brilha no alto, permitindo-nos olhar para o mal-estar escondido em cada forma desordenada de estima: “Love is calling/ it’s time to let it through/ find a love that will make you/ I dare you to try”. A verdade é que neste álbum, como indica bem o título, o Titanic não se está a afundar mas a emergir das águas que nos envolvem e de que somos feitos.

TITANIC RISING | “ANDROMEDA”

Weyes Blood, Titanic Rising | em análise
Weyes Blood - Titanic Rising - crítica

Name: Titanic Rising

Author: Weyes Blood

Genre: Pop experimental, pop barroco, dream pop

Date published: 5 de April de 2019

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  • Maria Pacheco de Amorim - 90
  • Daniel Rodrigues - 90
90

Um resumo

Titanic Rising é um retrato portentoso dos nossos tempos, mas também do potencial artístico de Natalie Mering que aqui, por fim, se revela plenamente. Fazendo jus ao passado e usando-o sabiamente, recorrendo à tradição que lhe corre no sangue (no qual sempre viu a força generativa da ancestralidade), Weyes Blood cria uma verdadeira obra de arte pop, que sobrevoa léguas acima da música pop rasteira da própria época que assim, melhor que ninguém, consegue descrever. A sua voz e arranjos, sintetizando o antes e o agora, ofuscam – no alto planeta onde brilham – as tentativas insípidas de tantas cantoras e cantores de R&B vulgar ou folque de trazer por casa, que nunca transcenderão o tempo que Titanic Rising eterniza.

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