Andrei Tarkovsky | Ciclo de Cinema e 30 Anos da sua morte [2ª Parte]

 

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A propósito da retrospectiva integral da obra Andrei Tarkovsky (1932-1986), eis a segunda parte da vida e obra do cineasta russo que mais agitou o cinema contemporâneo. 

5 HUMANISMO EXISTENCIAL: DE ‘SOLARIS’ A ‘STALKER’

‘Solaris’ (Solyaris, 1972) é uma adaptação do famoso romance ficção-cientifica do escritor polaco Stanislaw Lem. A história acompanha a jornada do psicólogo Kris Kelvin (Donatas Banionis), enviado ao espaço para investigar os estranhos acontecimentos ocorridos na distante estação espacial que orbita o planeta Solaris. Kelvin, é surpreendido ao descobrir que um dos tripulantes se tinha suicidado e outros dois estavam à beira da loucura. De alguma forma, o misterioso oceano de ‘Solaris’ parece ter a capacidade de influenciar a mente humana, fazendo com que os que entram em contacto com ele recebam ‘visitantes’ inesperados. E Kelvin não é excepção já que depois de algum tempo de permanência na estação orbital, reencontra a sua esposa, falecida há dez anos.

A partir daí, o filme passa a examinar os conflitos e as ambiguidades de um homem que recebeu a excepcional oportunidade de reparar os erros do seu passado. Essencialmente, Solaris questiona as motivações da humanidade na sua inútil tentativa de encontrar a solução para suas dúvidas e problemas existenciais na vastidão do Universo. Desde o seu lançamento até hoje, Solaris é por muitos, e exageradamente, considerado como uma resposta soviética a ‘2001: Uma Odisseia no Espaço’ (2001: A Space Odissey, 1968), de Stanley Kubrick. Sem dúvida alguma, tratam-se de duas obras-primas do cinema, mas o termo ‘resposta’ não será propriamente o mais adequado para comparar dois filmes que de alguma forma se complementam mutuamente. E Solaris nunca será de todo um 2001 dos pobres.

Solaris de Andrei Tarkovsky

‘…’Solaris’ é por muitos, e exageradamente, considerado como uma resposta soviética a ‘2001: Uma Odisseia no Espaço’…’

‘O Espelho’ (Zerkalo, 1975) alinha mais ou menos pelo mesmo tema da pesquisa da mente humana, já que é uma formidável exploração dos mecanismos que constituem a memória. Baseado nas poesias de seu pai, Arseni, que constituem a narração que acompanha todo o filme, torna-o talvez o mais autobiográfico do realizador. O protagonista viaja a um passado que continua a existir nas suas mais recônditas lembranças. Pouco se vê do seu presente, mas podemos compreendê-lo quase inteiramente, entrando em contato directo com seu mundo interior, descobrindo o que pensa, os seus maiores sonhos, traumas e desejos. Assim, a memória é a pedra fundamental da nossa personalidade, pois sem ela não temos passado e, consequentemente, nada somos.

‘Stalker’ (1979) é seguramente um dos filmes mais visionários de Tarkovsky, que atravessa também o universo da ficção científica e do ensaio filosófico sobre uma região isolada e cercada de mistérios conhecida como ‘Zona’. A origem dos incríveis poderes deste local é aparentemente desconhecida, sendo atribuída à queda de um meteorito ou, ainda, a uma inexplicável presença alienígena. O facto é que qualquer indivíduo que penetre na ‘Zona’ e chegue a uma determinada sala, todos os seus desejos podem tornar-se realidade. No entanto, somente certas pessoas, conhecidas como stalkers, são capazes de evitar as armadilhas e chegar com segurança ao local. Quando dois intelectuais (um cientista e um escritor, provavelmente representando a dicotomia razão versus emoção) resolvem desvendar os segredos da ‘Zona’, um stalker é contratado para guiá-los através desse mundo desconhecido. Os três viajantes deparam-se com a entrada numa sala misteriosa, mas hesitam em entrar, talvez porque se tiverem todos os seus desejos realizados, não encontrarão mais motivos para viver. Ou ainda a possibilidade de sentirem algo mais sombrio: se desejos inconscientes se materializarem, os resultados podem ser imprevisíveis.

‘Stalker’ é assim um filme que lança um olhar crítico sobre o mundo actual, excessivamente niilista e dependente da ciência e da tecnologia. Essa intenção fica clara, não apenas na amarga decepção do stalker e dos seus dois companheiros de jornada, mas também no paralelo que o realizador faz entre a cena inicial e a final. Logo no começo do filme, quando vemos o copo trepidando na mesa ao som do ruído de um comboio, imediatamente estabelecemos uma relação de causa/efeito entre os dois fenómenos. Apenas na cena final, em que a verdade demonstrada é bastante diferente da nossa primeira suposição, percebemos como a nossa visão é limitada. Estamos de tal forma condicionados pela sociedade moderna que nem sequer levamos em conta qualquer hipótese de explicação não corroborada pela ciência e pelas leis científicas.

Stalker de Andrei Tarkovsky

‘…Stalker é um filme que lança um olhar crítico sobre o mundo actual, excessivamente niilista e dependente da ciência e da tecnologia.’

6 NO EXILIO: DE ‘NOSTALGIA’ A ‘O SACRIFÍCIO’

Em ‘Nostalgia’ (Nostalghia, 1983), o realizador trata do regresso de uma grande figura da cultura russa, acompanhando a viagem do poeta Andrei Gorchakov, que vai à Itália com o objectivo de recolher material sobre a vida do músico Sosnovsky. Acompanhado por Eugénia, a sua guia italiana, o protagonista conhece Domenico, um morador local que todos consideram um louco, pois, no passado, fechou-se com a família dentro de casa por vários anos, esperando pelo fim do mundo. Gorchakov e Domenico são muito diferentes, mas ambos sentem-se incompreendidos e vivem num isolamento que cresce a cada momento. O primeiro é acometido de um profundo sentimento de saudade da sua casa, da terra natal e dos seus entes queridos; o segundo entende que a sociedade tomou um rumo equivocado e que, para corrigi-lo, seria necessário recomeçar do zero.

Um e outro acabam por materializar as suas ideias e a sua fé de forma absolutamente arrebatadora: Domenico declamando fervorosamente para as silenciosas estátuas na praça, enquanto Gorchakov cumpre sua promessa de atravessar a piscina de Santa Catarina com a pequena vela acesa. Este filme foi o primeiro realizado por Tarkovsky fora do seu país e talvez seja justamente por isso que o sentimento de nostalgia se evidencia nele de forma tão incisiva. Depois de concluído o filme, Tarkovsky e a mulher, que sempre demonstraram uma certa oposição ao regime, decidem desertar e nunca mais voltaram à URSS, apesar do cineasta passar o resto de seus dias tentando persuadir as autoridades soviéticas a permitir que seu pai e seu filho viessem ao seu encontro.

Sacrificio de Andrei Tarkovsky

‘Sacrificio foi o primeiro realizado por Tarkovsky fora do seu país e talvez seja justamente por isso que o sentimento de nostalgia se evidencia nele de forma tão incisiva.’

O último trabalho do realizador foi ‘O Sacrifício’ (Offret – Sacrificatio, 1986). Filmado na Suécia e pouco tempo antes de sua morte, por cancro, ganhou quatro prêmios no Festival de Cannes e conta com a participação de colaboradores habituais de Ingmar Bergman, um dos cineastas que Tarkovsky sempre admirou. Alexander (Erland Josephson), um actor retirado dos palcos, sente-se preocupado com a perda de espiritualidade no mundo, mas apesar disso a sua família e amigos reúnem-se para festejar o seu aniversário. A aparente melancolia do grupo transforma-se num incontido desespero quando rebenta uma guerra nuclear entre as potências globais. Face à iminente possibilidade de aniquilação, o protagonista toma a única atitude capaz de salvar aqueles que ama: visitar a estranhíssima Maria, que seu amigo carteiro jura ser uma feiticeira. Com uma fotografia fantástica e discutindo temas invariavelmente fundamentais ainda para o mundo de hoje, o filme é uma verdadeira elegia da fé e da incrível força de que dispõe o homem comum para lutar contra a predeterminação e estabelecer um destino próprio, tanto para si quanto para seus semelhantes.

VÊ TAMBÉM: As semelhanças entre The Revenant e Tarkovsky

7 FILÓSOFO DO CINEMA: AS INFLUÊNCIAS DE KIERKEGAARD

Mais do que um grande realizador, Tarkovsky provou ser também um grande pensador da sétima arte. Baseando-se nos seus conhecimento generalistas de todas as artes, em Esculpir o Tempo (edição brasileira da Martins Fontes, 2002), o seu livro onde teoriza algumas das suas concepções, traz-nos novos pontos de vista sobre o cinema, como a de que este não seria apenas formado por uma amálgama das outras artes (literatura, música, teatro, pintura, etc). Tal combinação, segundo ele, resultaria apenas numa forma híbrida, vazia e pretensiosa da imagem. Pelo contrário, defende o cinema como forma de arte absolutamente autónoma, uma vez que seu princípio estético é único e só passou a existir com o advento do cinematógrafo: o registro da impressão do tempo. Daí a afirmar que, da mesma maneira como um escultor toma um bloco de mármore e nele trabalha para dar forma à sua visão artística, o cineasta toma um bloco de tempo e parte dele para desenvolver sua obra.

Esculpir o Tempo sobre Andrei Tarkovsky

Tanto a concepção estética como a atmosfera emocional dos filmes de Tarkovsky sugerem a crença do cineasta numa afirmação radical do indivíduo, curiosamente, muito semelhante à encontrada na filosofia de Kierkegaard. Para o filósofo dinamarquês, a individualidade define nossa existência e não o individualismo. No entanto, essa individualidade não deve ser vista apenas como o conjunto de características que nos distingue uns dos outros, mas, sobretudo, como a angústia do aqui e agora, o desespero provocado pela solidão do homem diante do infinito. Basta-nos para confirmar esta ideia recordar de alguns dos mais marcantes personagens de Tarkovsky, como Kris Kelvin (Solaris), Domenico (Nostalgia) e Alexander (O Sacrifício), para repararmos que neles vamos encontrar exactamente essa busca da individualidade, no limiar da compreensão da nossa natureza e limitações humanas.

Andrey Tarkovsky cineasta russo

‘Mais do que um grande realizador, Tarkovsky provou ser também um grande pensador da sétima arte.’

De facto, no momento em que o homem aceita a sua natureza finita e se apercebe que esta nada mais é do que uma fase da sua trajetória para se tornar parte de algo muito maior e mais complexo, descobre assim a finalidade e a razão da sua existência. Nos planos longos, densos e de intensa reflexão filosófica, tão característicos do cineasta, arriscamo-nos a conceber também um Deus que está muito mais próximo do que poderíamos imaginar. Mas acima de tudo, Andrei Tarkovsky acreditava que a legitimidade de um autor consiste em permitir que o público possa reflectir e ir muito mais além do que é dito explicitamente nos seus filmes.

 

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JVM

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