Dersu Uzala, em análise

Dersu Uzala foi o único filme que Akira Kurosawa fez fora do Japão e é, por essa e outras razões, uma das mais importantes obras na carreira dessa divindade do cinema.

dersu uzala

Nos finais da década de 60 e início dos anos 70, Akira Kurosawa, um dos mais indisputáveis mestres do cinema, encontrou-se naquela que foi a época mais negra da sua carreira enquanto cineasta. A sua reputação de déspota perfeccionista no plateau havia deixado marcas graves na sua capacidade para encontrar financiamento, tinha sido despedido do projeto americano Tora! Tora! Tora!, os seus filmes eram cada vez menos populares e a crescente popularidade da televisão estava a mudar o panorama cinematográfico no Japão. Isto levou a que o “imperador”, como ele era, por muitos, apelidado, se visse perdido num novo paradigma onde não havia lugar para o seu tipo de filmes. O desastre financeiro de Dodesukaden em 1971 foi a última gota e Kurosawa tentou o suicídio. Felizmente fracassou e, em 1972, apareceu a luz da esperança para o cineasta. O soviético Sergey Gerasimov vinha propor-lhe uma coprodução com a Mosfilm e, apesar de uma inicial relutância, Kurosawa aceitou trabalhar para o estúdio estrangeiro.

Apesar de muitas vezes ter imposto um opressivo controlo sobre os seus cineastas nacionais, a Mosfilm concedeu completa liberdade artística a Kurosawa, apenas apontando que o projeto deveria ser uma adaptação de literatura russa. Dersu Uzala, ecolhido por Kurosawa, era um livro que poucos conheciam fora das fronteiras soviéticas, consistindo num relato do explorador Vladimir Arsenyev sobre a sua amizade com a figura titular, um caçador que tinha conhecido aquando das suas viagens pelas florestas siberianas. A verdade é que Kurosawa já antes tinha entretido a ideia de adaptar esta história ao cinema, sendo que, originalmente, o cineasta havia pensado em transpor a trama para o Japão, algo que tinha apresentado imensas dificuldades. Agora, com o apoio da grandiosa Mosfilm, ele finalmente trouxe a vida de Uzala até ao grande ecrã e conseguiu renovar a sua imagem profissional pelo caminho, ganhando o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro e recapturando a adoração da cinefilia internacional.

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O filme tem assim um lugar de alta importância na filmografia de Akira Kurosawa e é, portanto, uma obra essencial para qualquer um dos seus fãs. Para além do que já foi mencionado, Dersu Uzala foi também o segundo filme a cor do cineasta e foi a primeira vez em que Kurosawa usou película de 70mm, assim como foi o único filme que ele realizou completamente fora do Japão. Mesmo as suas co-produções internacionais futuras como Kagemusha, Ran e Sonhos, seriam focados no Japão, mas esta história é intrinsecamente russa, sendo as paisagens florestais, que enchem o ecrã com a sua imponente majestade, quase um terceiro protagonista do filme.

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O espaço envolvente, assim como sua relação com os humanos nele inseridos, é um dos grandes temas de Dersu Uzala. No início do filme, Arsenyev chega à floresta siberiana com o intuito de visitar a sepultura do seu antigo amigo, mas quando lá chega, os ventos do progresso humano já estão a alterar a floresta, e o que era outrora uma clareira é agora um lugar de obras, onde uma nova aldeia está a ser construída. Rapidamente, Kurosawa passa a ação para o flashback e de um local de construção cheio de montes de terra estéril e pedaços de madeira cortada, o cenário transmuta-se numa imagem de esmagadora grandeza. O widescreen de 70mm captura com veneração a paisagem e os seus verdes pintam a tela com uma beleza naturalista completamente distinta da primeira aventura de Kurosawa pelo filme a cores, onde o cineasta havia preferido um registo fortemente artificial e quase grotesco. Este cenário florestal domina a primeira parte do filme e a maioria da segunda, sendo apenas abandonada em dois interlúdios importantes, um deles passado num inóspito lago gelado e outro numa cidade russa.

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Falemos primeiro da tardia visita ao ambiente urbano, onde o contraste se regista de modo mais violento. Três anos depois de uma aventura inicial, em que Vladimir Arsenyev conhece Dersu Uzala e trabalha lado-a-lado com o caçador nas suas explorações, o russo volta a encontrar o amigo numa expedição e acaba por levá-lo para viver consigo na cidade. O velho caçador está a ficar cego e morrerá na floresta, tornando a mudança de cenário algo inescapável, mas isso não atenua o sofrimento do ancião que sempre viveu na liberdade da natureza. Kurosawa nunca permite que vejamos nada do mundo urbano a não ser as suas casas, telhados cinzentos, paredes brancas e janelas obscurecidas pela geada, e assim cria um desconforto supremo na audiência e nas personagens que filma. Enquanto nas cenas florestais, a composição enfatizava a presença constante de vida à volta das personagens, com árvores, ramos e sombras a criarem enquadramentos dentro de enquadramentos, na cidade esse dinamismo sumiu. As pessoas habitam os interiores de modo rígido e teatral, com posições reminiscentes das poses em pinturas domésticas e parecem todos viver dentro de “caixas”. A montagem fortemente elíptica (um possível resultado de cortes que reduziram uma versão original de três horas aos 144 minutos agora disponíveis) também ajuda a esse sentido de encurralamento, sufocando ainda mais as personagens dentro da casa e seus invariáveis limites fabricados. Mesmo que o resultado final do seu abandono da segurança da vida urbana seja a morte, eventualmente o caçador retorna à floresta onde encontra o seu fim, não suportando mais viver fechado.

Essa mestria da mise-en-scène como meio de modular as reações inconscientes da audiência face à narrativa humana e telegrafar os conflitos interiores e cósmicos das suas personagens é uma perfeita mostra da magnificência que era o cinema de Kurosawa, mas a sequência do lago gelado é ainda mais impressionante. Se na cidade, o mundo natural vai sumir, nos momentos em que Uzala e Arsenyev lutam freneticamente por construir um abrigo depois de se perderem no gelo, ele está sempre presente. O sol brilha violento no céu, o solo gelado parece transpirar, o vento empurra a neve e simula o movimento de um riacho, correios de água acabam por aparecer, o som da ventania a cortar o espaço vazio é como um demónio a avisar a chegada da noite e a montagem de Kurosawa vai cortando entre as imagens belíssimas com uma crescente energia e frenesim. O resultado final é de cortar a respiração e é a apoteose de um dos mais significativos aspetos da filmografia de Kurosawa: a relação e representação da natureza face ao ser humano.

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Pode aparentar que Dersu Uzala apresenta um simples binário entre a natureza idílica e o progresso humano que tudo confina, mas Kurosawa não deixa que o filme caia em tais simplismos filosóficos. Este não é um sermão à la Rosseau e os momentos mais didáticos de Dersu Uzala são mais do que compensados pela execução formal, onde o cineasta consegue sombrear o conflito central ao filme e encontrar nele uma complexidade usualmente ignorada. A natureza presente aqui, não é algo idealizado e perfeito, e sua magnificência apenas parece esmagar os humanos. Dersu acredita que a sua cegueira é uma consequência da morte injustificada de um tigre, mas Kurosawa nunca desmente ou assegura essa perspetiva. Mais do que um castigo divino ou karmico, a tragédia de Dersu é potentemente humana, consistindo no definhar de um homem envelhecido que a passagem do tempo derrotou e cuja fragilidade não é algo que possa persistir no mundo natural.

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Akira Kurosawa, mais que um ativista ecológico, era um humanista que sempre usou o seu cinema como veículo para expressar esses ideais. Como consequência, Dersu Uzala é tanto uma carta de amor ao mundo natural e sua virginal monumentalidade, como é um estudo entristecido da fragilidade humana e seu potencial para generosidade, bondade e respeito. As pessoas da cidade nunca são vilificadas, nem Arsenyev é alguma vez apontado como errado ao retirar o seu amigo da violência da floresta siberiana. Veja-se o funeral de Dersu como suprassumo exemplo disso mesmo. É certo que Kurosawa mostra uma certa ironia na sua apresentação da burocracia, mas toda a cena é caracterizada maioritariamente por uma assombrosa franqueza. Não há música comovente ou heroica, ou enquadramentos vertiginosos, nenhum comentário ou tratamento vil dos homens que enterram Dersu, nada de facilitismos dramáticos. Apenas temos a postura cabisbaixa de um homem que vê o seu amigo ser enterrado. Na simplicidade desse momento, Kurosawa alcança uma beleza profunda e despida de fáceis binários ou conflitos dramatúrgicos. E assim, Dersu Uzala é uma obra que, em alguns pontos menores, deixa algo a desejar, mas que se afirma como um belo exemplo da mestria daquele que foi um dos grandes visionários humanistas do cinema.

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O MELHOR: Toda a sequência no lago gelado que é um dos grandes momentos em todo o cinema de Kurosawa. A fragilidade humana face à implacável força da natureza poucas vezes foi tão maravilhosamente representada no cinema e o virtuosismo do cineasta foi raramente mais aguçado.

O PIOR: A um nível narrativo, as caracterizações dos dois protagonistas deixam muito a desejar, mas Kurosawa consegue parcialmente compensar essa lacuna com a direção. A um nível mais técnico, a sonoplastia, da responsabilidade da Mosfilm, é abismal, apenas ganhando alguma elegância e modulação de valor quando a cena passa para o sufocante ambiente da cidade.


 

Título Original: Dersu Uzala
Realizador:  Akira Kurosawa
Elenco: Maksim Munzuk, Yuriy Solomin, Mikhail Bychkov, Svetlana Danilchenko 
Leopardo Filmes | Aventura, Drama, Biografia | 1975 | 144 min

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