10 musicais para ver antes de La La Land | As Donzelas de Rochefort

No seguimento da melancolia de Os Chapéus-de-Chuva de Cherburgo, Jacques Demy virou-se para a comédia solarenga em As Donzelas de Rochefort, um esforço cinematográfico igualmente experimental e ainda mais radical.

 


<< Os Chapéus-de-Cuva de CherburgoSweet Charity >>


 

Apesar das suas muitas referências aos clássicos do cinema musical de Hollywood, especialmente os filmes dos anos 50, o próprio Damien Chazelle já veio dizer em entrevistas que nenhuns filmes tiveram tanta influência em La La Land que os dois mais famosos musicais de Jacques Demy. Na página anterior já falámos da melancolia e maturidade experimental de Os Chapéus-de-Chuva de Cherburgo, mas agora está na altura de nos debruçarmos sobre As Donzelas de Rochefort de 1967. As ambições vanguardistas do primeiro filme continuam a existir neste segundo que é, em essência, outra dissecação celebrativa das convenções do cinema musical. Apesar dessas semelhanças e muitas outras não mencionadas, na mesma medida em que Cherburgo é uma obra marcada pela tristeza, pelo pragmatismo e pela sentimentalidade desenvergonhada, Rochefort é um espetáculo muito pouco espetacular de solarenga despreocupação anti-sentimental.

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Em resumo, a receita para La La Land é dois musicais de Demy bem misturados, acrescente-se boas doses de jazz e uma pitada de polidez de Hollywood dos grandes estúdios para contrabalançar os aspetos mais experimentais e deliberadamente imperfeitos dos filmes franceses, mantendo-se algumas fragilidades vocais e sonoras. Sendo assim, a quem vier com as acusações, já muito repetidas, que o filme tem falta de primor performativo e que Gosling e Stone, apesar de bons atores, não são grandiosos dançarinos ou cantores, a resposta mais fácil é dizer simplesmente que esses defeitos são em si características referenciais.

Desengane-se quem pensar que as referências aos filmes de Demy são como os piscares de olho aos filmes de Fred e Ginger, pois o legado dos musicais da Nouvelle Vague em La La Land é muito mais profundo e ligado à sua narrativa, forma, estrutura, direção de atores, sonoridade e até uma série de momentos especificamente homenageados. O mais flagrante desses momentos é a abertura do filme num engarrafamento à entrada de Los Angeles que, segundo o próprio Chazelle, consistiu uma referência direta à abertura de As Donzelas de Rochefort (também há algo de Fellini na sua escolha de um engarrafamento, mas isso já é fora do panorama do cinema musical).

Fugindo momentaneamente à comparação de As Donzelas de Rochefort com La La Land, o filme de Demy é muito mais que um mero artefacto histórico pronto a ser referenciado por cineastas modernos. Afinal, este é o filme em que Demy mais se aproxima de criar aquilo que segundo Godard era uma impossível contradição concetual, um musical neorrealista. Não acreditam? Então tentem ver o filme com o olho crítico apurado para a mistura entre artificial e realismo e vão ver como alguns dos elementos que muitas pessoas, incluindo a célebre crítica Pauline Kael, têm apontado como defeitos deste filme são, na verdade, parte de um discurso quase radical na sua mistura estilística. Veja-se o modo como em muitos números de dança coletiva, o background está cheio de pessoas a passear-se normalmente, excluídas do registo fantasioso. Outro exemplo é a bizarra conjugação tonal da narrativa e estruturação musical que encena um par de canções joviais no cenário de um homicídio.

Também num patamar mais mecânico e formal temos a impetuosa falta de polidez que o filme apresenta tanto sonora como visualmente. É certo que o uso de espaços reais cheios de apontamentos fantasiosos e uso de uma paleta cromática saturadíssima no que diz respeito a adereços e figurinos (especialmente os das gémeas protagonistas) é uma continuação da estética já evidenciada em Os Chapéus-de-Chuva de Cherburgo. Não obstante essa semelhança, a fotografia e iluminação da cena em As Donzelas de Rochefort prima pela luz natural e feios esquemas que resultam em sombras peculiares e indesejados reflexos que nada têm que ver com o tipo de espetacularidade pitoresca do filme anterior. Em relação ao som, já mencionámos a falta de primor vocal dos protagonistas e a isso acrescenta-se o facto de que tais vozes pueris são notoriamente dobradas por cima dos atores em cena. Quando se tratam de figuras raramente ouvidas num registo canoro como Catherine Deneuve ou Michel Piccoli o mecanismo não é tão chocante como quando é aplicado a Gene Kelly. Não há qualquer tentativa de tornar o esforço artificial ignorável ou fácil de assimilar mentalmente. De forma quase paradoxal, essa admissão descarada da falsidade é em si um gesto realista.

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Com tudo isto dito, não é nenhum acaso o legado que os filmes de Demy têm conseguido manter desde a sua estreia, influenciando inúmeros cinéfilos, cineastas e artistas de outras áreas ao longo de gerações. Verdade seja dita, a homenagem apaixonada de Chazelle a estes filmes, que já são também homenagens críticas de obras anteriores, nem é das mais relevantes ou importantes de sempre. Afinal, sem o pós-modernismo inebriante de Demy, os desenvolvimentos do cinema musical nas últimas décadas dificilmente teriam acontecido do mesmo modo e o mesmo se diz de obras de outro cariz, como videoclips. Um exemplo muito direto dessa relação do videoclip com Demy é o estupendo vídeo promocional de “It’s Oh So Quiet” de Björk.

 


<< Os Chapéus-de-Cuva de CherburgoSweet Charity >>


 

Com o sucesso de La La Land podemos dizer que as audiências americanas de 2017 já estão finalmente preparadas para aceitar o tipo de desconstrução crítica que os franceses já tinham celebrado em 1967 com As Donzelas de Rochefort. Na próxima página contudo, vamos voltar a entrar nos estúdios de Hollywood dos anos 60 com a estreia de Bob Fosse na cadeira de realizador.

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