10 musicais para ver antes de La La Land | Os Chapéus-de-Chuva de Cherburgo

Os Chapéus-de-Chuva de Cherburgo é um dos mais belos sucessos da Nouvelle Vague e a sua influência em La La Land é absolutamente monumental.

 


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[Há muitos SPOILERS neste texto para ambos os filmes em análise. Cuidado!]

La La Land está tão pejado de referências a Os Chapéu-de-Chuva de Cherburgo que o filme é quase tanto uma homenagem às experiências musicais de Jacques Demy como é uma carta de amor aos clássicos americanos do género. Ou melhor, o projeto de Damien Chazelle é, de certa forma, uma repetição do que Demy já tinha feito com os seus filmes – ou seja, desconstruir e celebrar os códigos e artificialismos do género musical com especial ênfase nos clássicos escapistas de Hollywood. Ambos os cineastas fizeram isso através de um romance contemporâneo original situado numa versão meio sonhada de uma localização urbana bem real, filmaram o filme nesse mesmo espaço com atores cujas capacidades vocais estão bem aquém dos méritos dos veteranos de Hollywood, usaram paletas cromáticas que despem os espaços reais do seu inerente realismo e ambos terminam as narrativas com uma nota de agridoce pragmatismo adulto que subverte as expetativas de uma audiência à espera de um final feliz. Em suma, sem Os Chapéus-de-Chuva de Cherburgo provavelmente La La Land nunca teria sido feito.

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Com tudo isso dito, convém falar-se um pouco do filme de Jacques Demy sem ser no contexto da sua relação com La La Land e suas muitas referências, que vão desde as soluções cinematográficas mencionadas acima até a piscares de olho na forma de lojas de chapéus-de-chuva espalhados por Los Angeles, por exemplo. Afinal, antes de Damien Chazelle mostrar seu desenvergonhado fanatismo por este romance musical, já o filme tinha um legado fabuloso. Em 1964 ganhou a Palma de Ouro em Cannes, um ano depois conquistou 5 indicações para os Óscares, tendo entretanto lançado a carreira de Catherine Deneuve que se viria a tornar um inequívoco ícone do cinema francófono e, para além do mais, foi um tremendo sucesso popular e mereceu várias reposições em França nos anos seguintes. É extremamente raro termos um musical feito fora das fronteiras de Los Angeles a ser de tal modo aclamado e ainda mais ver uma obra de explícitas ambições vanguardistas a se tornar um sucesso de bilheteiras.

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Falamos de ambições vanguardistas pois o filme é uma obra nascida no píncaro da Nouvelle Vague, mesmo que Demy fizesse parte do grupo de esquerda desse movimento que, infelizmente, é muito menos conhecido e celebrado que aquele vindo da Cahiers du Cinema. Podemos aliás especular que este mesmo projeto é uma resposta de Demy ao cinismo pós-modernista de Godard que, com Uma Mulher é uma Mulher, apresentou ao mundo uma dissecação trocista e subversiva do género musical. Jacques Demy, pelo contrário, concebeu neste romance protagonizado por Genevieve e Guy – uma adolescente, filha de uma vendedora de chapéus-de-chuva, e seu namorado mecânico – como um espetáculo de descarada sentimentalidade. Nas suas mãos cinéfilas, o musical é certamente desconstruído pelos seus códigos e excessos, mas é simultaneamente celebrado. Não há melhor exemplo disso que a banda-sonora composta por Michel Legrand.

Se formos honestos, não há forma de legitimamente negar a pura genialidade e beleza  desse feito musical. Na mesma medida, é difícil olhar para o aspeto musical deste filme e ver aí o primor harmonioso dos clássicos de Hollywood com os seus números bem definidos e separados da narrativa principal. Isto acontece pois, na sua forma sung-through onde todo o texto, escrito como diálogo e não como verso musicado, é cantado, a música desta obra está mais próxima dos musicais operáticos que tomaram o West End de assalto nos anos 80 do que com as películas de Fred Astaire e Gene Kelly. Em consequência não existem grandes momentos que uma pessoa possa separar do resto do filme e definir como um número musical e Demy bem mostra o absurdo inerente a tal proposta, sem nunca negar o seu prazer espetacular.

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Esse equilíbrio entre o romantismo e excessiva musicalidade da componente sonora do filme está em constante balanço e contraposição com os restantes elementos. Os cenários, já brevemente referidos, são um exagero sonhador de uma realidade visceral da Cherburgo de 1964. As suas cores, em particular, são de uma irrealidade que está em constante contraste com o realismo intrínseco às filmagens fora dos estúdios. Ao mesmo tempo que essa dinâmica estética se manifesta, a narrativa evolui de modo cruelmente adulto, começando com a pura inocência do amor adolescente filtrado pela perspetiva nostálgica e melancólica de um cineasta de 33 anos. Ele nunca olha os seus protagonistas com nenhum tipo de superioridade jocosa, mas sim com luminosa empatia e entendimento. No entanto, à medida que o enredo separa forçosamente os amantes e, no caso de Genevieve, substitui a ingenuidade juvenil com a maturidade de um adulto.

Consequentemente, nos seus famosos momentos finais, Os Chapéus-de-Chuva de Cherburgo  atinge o píncaro do seu génio recorrendo à repetição e apelando às expetativas da audiência de modo tão cruel como inspirado. Na banda-sonora ressoa o tema de amor que, no princípio do filme, ilustrou a paixão adolescente dos amantes e a audiência tende logo a recordar essa paixão juvenil e a atribuir-lhe o valor santíssimo do primeiro amor. No entanto, longe de tais noções cegamente românticas, as personagens, já adultas e há muito separadas, comportam-se de um modo que nega essa importância, aceitando a efemeridade da sua paixão passada e tratando o seu fim, não como uma grande tragédia, mas como um desenvolvimento inevitável. Amor adulto e maturo pode ter muito mais profundidade emocional que a fogosa e temporária paixão da juventude, mas, ao mesmo tempo que Demy reconhece esse facto, também admite quão mais jubilante e prazerosa são os explosivos afetos dos jovens inebriados de amor. Nessa dinâmica entre inocência e maturidade, classicismo e vanguarda, está a magia que tem vindo a fazer com que Os Chapéus-de-Chuva de Cherburgo ainda seja recordado e celebrado com carinho e paixão por uma panóplia de devotos cinéfilos como Damien Chazelle.

 


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Na próxima página vamos continuar na oeuvre de Jacques Demy e descobriremos de onde Damien Chazelle tirou a ideia para a já famosa abertura de La La Land.

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