13º IndieLisboa | Flotel Europa, em análise

Flotel Europa é um retrato formidável e comovente de uma crise de refugiados do passado, visto a partir das lembranças de uma das suas vítimas, o realizador Vladimir Tomic.

flotel europa

Em 1992, com o início da guerra na Bósnia, milhares de pessoas fugiram da sua nação e procuraram asilo na Europa. Tais paralelos com a situação atual da crise dos refugiados são implícitos mas nunca gritados à audiência de Flotel Europa, um documentário autobiográfico de Vladimir Tomic, onde o realizador relata a sua vida no asilo titular, um enorme navio no Porto de Copenhaga, onde as autoridades dinamarquesas colocaram os refugiados à espera de novas casas. Nessa construção flutuante, Tomic e parte de sua família viveram durante anos, enquanto no exterior do seu asilo e clausura, a guerra continuava a destruir o seu país e a colher as vidas dos seus familiares, e os Dinamarqueses e restantes europeus, impassíveis face a esta situação dos refugiados, continuavam a viver as suas vidas normais, alheios à angústia pela qual eram parcialmente responsáveis.

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Há que referir um dado importante, a idade do realizador. Aquando de tais eventos, Tomic era apenas um jovem, uma criança a entrar na adolescência. Isso é evidente desde a narração inicial em que a inocência infantil do narrador é colocada em ênfase face à realidade do Flotel, apresentado pela primeira vez como um bloco no meio da imagem, cortado por irregularidades na gravação, como se fosse uma memória que o realizador está a forçosamente conjurar, reunindo os fragmentos da sua lembrança e materializando essa realidade passada que, mesmo assim é um snapshot da sua vida e não um retrato coletivo. O que nós observamos em Flotel Europa é um fragmento dessa vida no asilo flutuante dos refugiados bósnios, uma parte ínfima de algo maior. Como consequência desta perspetiva juvenil, ou pelo menos da lembrança de tal perspetiva, a narração do filme muitas vezes parece contornar e apenas sugerir algumas das mais agressivas questões políticas inerentes a esta história. Por exemplo, memórias de primeiros interesses sexuais tomam precedente em relação a relatos mais politicamente focados. Mais rapidamente Tomic relata o seu interesse numa rapariga que aprende danças tradicionais, ou os rituais de masturbação em grupo dos seus amigos.

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Tal não significa, contudo, que o filme evite temas mais negros. Uma das imagens mais impactantes que a narração de Tomic sugere não é nenhuma fantasia adolescente sobre a jovem tradutora que captura o interesse de todos os rapazes, mas sim a descrição das pessoas que passam a sua vida na sala da televisão, onde observam as notícias sobre a guerra bosniana, esperando e temendo ver um vislumbre de um ente querido. Lentamente, estes espectros humanos, segundo as palavras de Tomic, começam a se parecer com a própria mobília que preenche o espaço vazio da sala da televisão, como que se os seus corpos se fossem fundindo lentamente, reduzindo-os a meros objetos que observam eternamente, numa espera sem fim por alguma esperança, por alguma razão para continuar.

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Essas realidades alheias vão sendo referidas na narrativa, concedendo à audiência um retrato das pessoas e vidas do Flotel Europa que, apesar de estar restrito pelos olhos de um jovem, consegue ser mais abrangente que uma simples e limitada autobiografia. Outros detalhes humanos que vão, gradualmente, tecendo uma tapeçaria de sofrimento e resiliência humana, são, por exemplo, as informações que vamos tendo da mãe de Tomic. É a sua afável apresentação da vida no Flotel Europa que primeiro nos introduz à realidade desse mundo, como se o realizador lhe cedesse, tal como o fez na infância, o microfone para ela descrever a sua própria perspetiva. No entanto, tal existência sorridente pode existir nas imagens filmadas, mas depressa se vai esvanecendo quando ouvimos descritos momentos tão dolorosos como o dia em que ela descobre que seu irmão morreu, ou quando, devido a tensões políticas dentro do barco, essa mesma perda pessoal é usada como uma arma contra as suas argumentações.

Face a esta tapeçaria nós, os espetadores vamo-nos movendo pela sua intimidade através da recordação do autor de Flotel Europa, mas é fácil nos identificarmos com os dinamarqueses que olham o asilo aquático e nele veem um aquário cheio de peixes exóticos, vidas alheias a ser observadas à distância do privilégio e segurança, ou mesmo à distância física do canal que sempre separa o Flotel de Copenhaga. No entanto, a nós são concedidas as palavras de Tomic e através delas seguimos a sua história, um conto que depressa se vai revelando como a narrativa da morte lenta da sua inocência dentro do Flotel. Olhe-se, por exemplo, a história de um grupo de amigos adultos que o realizador conheceu. Na parede da sua cabina estava um poster com as palavras Sex, Drugs & Rock’n Roll, nas suas camas, mulheres desnudas que possibilitaram a Tomic os primeiros vislumbres de seios num contexto sexual, à sua volta o som de bandas americanas, e nas suas veias as substâncias que viriam a trazer-lhes desgraça. Um desses homens acaba mesmo por perder a vida por entre desinteressados transeuntes, nas escadas de uma estação de comboio. Os dinamarqueses, seguros e distantes, em direção aos seus comboios, enquanto este desesperado, fora da exótica localização do aquário Flotel, vai desfalecendo com uma agulha espetada no braço, longe de qualquer conforto familiar para onde os viajantes se destinavam nessa fatídica véspera de Natal.

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A apoteose desta viagem de perda de inocência de Tomic é um concerto assistido pelo narrador e seus amigos hedonistas, antes destes encontrarem os seus tristes fins. Nesse evento, ao ouvirem uma canção nacionalista, Tomic apercebe-se de algo trágico e irrevogável, que a nação que conhecia, que o seu país de origem morreu. Tal como este filme é uma memória de um tempo passado, para o jovem Tomic a realidade do seu país tornou-se, pela primeira vez, uma memória do passado, um fragmento pessoal na cronologia do tempo que nunca para de avançar. Poderá não parecer por esta rudimentar descrição mas poucos momentos no recente cinema documental conseguem alcançar tanto impacto emocional como esta narração de um momento fulcral na vida de um rapaz em crescimento, este prego final no caixão da sua infância.

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Algo importante que ainda não foi referido é que Flotel Europa foi construído a partir de filmagens em VHS. Quando se aperceberam da relativa ineficácia das cartas que enviavam aos seus familiares, os passageiros do Flotel começaram a gravar a sua vida como mensagem aos seus entes queridos. Pegando nessa matéria bruta de inegável intimidade pessoal, Vladimir Tomic construiu um filme que tem assim o aspeto de um home video, uma memória familiar capturada para preservar o momento para a posteridade. Como consequência, a narrativa e a imagem muitas vezes não descrevem o mesmo e as caras, por muito que as palavras de Tomic apontem o contrário, estão quase sempre a sorrir, assegurando os seus familiares da sua segurança. Em momentos fulcrais, Tomic chega mesmo a recorrer a imagens de um filme sobre um herói juvenil da 2ª Guerra Mundial, um resistente bósnio face à ameaça nazi. Tais contrastes humanos reinam na totalidade de Flotel Europa que, com este visual, é mesmo como uma memória tornada máquina do tempo cinematográfica, uma janela a um outro tempo e realidade humana, um filme tão íntimo como importante no seu tom e conteúdo.

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O MELHOR: A fusão de uma história de crescimento pessoal com o peso de uma catástrofe político, social e histórico.

O PIOR: Apesar de fascinante, a perspetiva do realizador consegue ser muito limitante. Existem ocasiões em que quase desejamos poder ver mais da sua mãe e suas palavras e visão destes mesmos duros anos.


 

Título Original: Flotel Europa
Realizador:  Vladimir Tomic
Documentário | 2015 | 70 min

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