13º IndieLisboa | Mate-me Por Favor, em análise

Mate-me Por Favor de Anita Rocha da Silveira é uma ensandecida reinvenção do slasher, com um registo quase surrealista a ser brilhantemente empregue na ilustração de uma perspetiva adolescente feminina.

Mate-me por favor

Mate-me Por Favor, a primeira longa-metragem da realizadora brasileira Anita Rocha da Silveira, inicia-se como um slasher impressionístico. Vislumbramos uma noite de festa em que uma rapariga é perseguida por um desconhecido, sendo eventualmente violada e brutalmente assassinada, e seu corpo deixado num descampado. Tudo isto é visto em imagens que obsessivamente colocam a vítima no centro do enquadramento e onde o som exacerba os seus derradeiros gritos de angústia, aqui quase tornados num uivo abstrato. Como seria de esperar num filme de terror protagonizado por adolescentes, este assassinato faz parte de um padrão de mortes semelhantes e essa sequência vai continuando, com os cadáveres de jovens a serem continuamente encontrados, ao longo dos dias em que dura a narrativa.

Com tal sequência de abertura e premissa inicial, seria fácil assumir que este é mais um filme de terror protagonizado por jovens a alcançar sucesso crítico no circuito internacional de festivais de cinema. Tal ocorrência tem-se vindo a tornar algo comum com filmes como It Follows ou Final Girls a serem descobertos todos os anos. No entanto, apesar da constante visão de sangue e corpos estropiados, Mate-me por Favor não é uma obra particularmente interessada em provocar medo na sua audiência, ou mesmo criar tensão e suspense. Pelo contrário, o principal interesse estrutural desta obra é a desconstrução e perversão dos cânones e códigos do filme de terror, especialmente o slasher, um subgénero que é horrivelmente caracterizado por rígidas fórmulas e personagens tipo, assim como atrozes exemplos de sexismo e simplificação desumana.

Mate-me Por Favor

Essa desconstrução, assimilação e subversão do slasher tradicional regista-se em vários níveis desta obra. Por exemplo, a nível formal e estético, Mate-me Por Favor deve muito ao cinema de terror de outros tempos, mas não tanto ao slasher dos anos 80, que é um tipo de narrativa intrinsecamente americana. Com as suas cores garridas, seu geral surrealismo, textualidade impressionista, caracterizações superficiais e momentos de inegável opulência que quase cai no kitsch, é difícil negar quão Rocha da Silveira parece ter sido influenciada pelos filmes de terror italianos da década de 70, nomeadamente os giallo. Tal referência torna-se particularmente incontornável quando chegamos a sequências como uma bizarra festa de debutantes, em que uma aniversariante se apresenta como uma glamourosa princesa acompanhada pelo seu príncipe, as luzes são quase expressionistas no seu ensandecido dramatismo colorido, e as paredes são forradas de jovens, quase zombies, a se beijarem compulsivamente e envergam gritantes roupas cheias de brilhantes.

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A execução desse momento de festa marca-a como algo estilizado e saído diretamente da imagética giallo, mas o seu conteúdo está muito mais próximo da realidade testemunhada pela autora de Mate-me por Favor do que se poderia inicialmente imaginar. Tais festas de debutantes, acompanhadas por um “príncipe” são comuns no mundo dos condomínios privados da Barra da Tijuca em que Anita Rocha da Silveira localiza a sua narrativa. Nessas ilhas urbanas, jovens de classe média fazem as suas vidas, muitas vezes distantes dos seus pais, que trabalham fora desse mundo fechado. Consequentemente, este é um filme desprovido da presença física de um único adulto, sendo que apenas os comunicados que se ouvem nos altifalantes da escola marcam a existência de alguém que não um adolescente ou jovem de 20 e poucos anos.

Mate-me por favor

Tais escolhas exacerbam um dos melhores aspetos do filme, a sua completa celebração de uma perspetiva adolescente, com todas as peculiaridades que isso implica. E não são adolescentes quaisquer, há que dizer. Para começar, apenas somos concedidos acesso ao imaginário de personagens femininas, enquanto os rapazes, com a possível exceção do irmão mais velho de Bia, a nossa protagonista, são sempre criaturas passivas que estão presentes ou para encher o espaço ou para serem objetos de desejo das mulheres que dominam a narrativa. Para além dessa característica feminina, o filme diferencia ainda os seus jovens ao os enclausurar por completo nesse já referido condomínio. O mundo exterior pode ser insinuado, mas a realidade é que todos estes jovens vivem numa espécie de realidade paralela ao resto da sua nação e mesmo da sua cidade. Entre si, acabam por criar algo semelhante a uma cultura própria em que as músicas popularizadas nas favelas são tornadas comodidades pop, a moda é gritante e saída das telenovelas que lhes enchem a televisão, a religião é um espetáculo com cruzes feitas de neons e pastoras evangélicas de tops decotados, e em que facebook é uma constante, mesmo preservando as memórias e imagens dos jovens que vão sendo assassinados, como que deixando para trás espectros virtuais.

Com essa perspetiva juvenil em mente, Mate-me Por Favor torna-se num dos mais fascinantes retratos da juventude contemporânea em recente cinema independente, ou pelo menos desta particular juventude isolada e privilegiada. A dependência que o filme tem dessa subjetividade adolescente é tão grande que cenas como um dance break no meio do recreio escolar parecem completamente orgânicas com o discurso do filme. Muitas vezes, obras sobre adolescentes, realizados por pessoas que já ultrapassaram essa fase da vida, têm a triste tendência de se distanciarem em demasia dos seus sujeitos, olhando-os mais como objetos de estudo e escrutínio que como humanos com perspetivas próprias e válidas. Mate-me Por Favor, para seu benefício e defeito, contorna esta tendência, oferecendo-se como uma obra de inegável impetuosidade juvenil, que, no entanto, consegue mostrar alguns rasgos de maturidade cinematográfica.

Mate-me Por Favor

Uma das grandes marcas dessa maturidade é o modo como Rocha da Silveira pega nos usuais sexismos das narrativas slasher e os subverte. Já falámos da inconsequência ou objetificação da maior parte das presenças masculinas, mas há que salientar quão sagaz e próxima é a observação dos códigos e peculiaridades das amizades femininas na adolescência. Bia, por exemplo, exemplifica os comportamentos de voracidade sexual que estamos acostumados a ver exclusivamente em protagonistas masculinos e há uma enorme franqueza no modo como isso é representado, longe de quaisquer inapropriados julgamentos e moralidades. Uma das mais interessantes facetas da sua personagem, e do filme em geral, é precisamente o modo como a morte, ao contrário de provocar medo e aversão, parece ser um curioso condutor de fascínio e mesmo de excitação erótica para esta jovem que, nestes momentos traumáticos, está a viver a sua primeira confrontação a tais realidades sanguinárias.

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Longe de John Carpenter ou John Hughes, Mate-me Por Favor é um curioso marco nos anais do cinema sobre adolescentes, estando, estilisticamente, mais próximo de David Lynch e Dario Argento, que podem não ser as referências diretas da realizadora mas pelo menos se apresentam como os seus mais óbvios colegas imagéticos. O filme resultante de tudo isto é uma colagem de impressões de uma adolescência sonhada, algo febril e vital que capta a atenção de uma audiência com tanta facilidade como a confunde e enfeitiça nas suas estranhas visões. Um dos relatos mais violentos do filme, o de uma atriz assassinada por um colega e sua mulher, é oriundo da realidade de Anita Rocha da Silveira, cuja memória de tal história é o perfeito objeto de comparação com esta sua mais recente obra. Algo violento e fascinante, perturbador e excitante, filtrado pelas memórias de uma perspetiva adolescente.

Mate-me Por Favor

O MELHOR: A completa franqueza na representação dos desejos de uma mente feminina adolescente e suas desconcertantes idiossincrasias.

O PIOR: Apesar de retratar com precisão uma perspetiva adolescente, o filme nunca consegue tornar as suas personagens em seres humanos complexos. São sempre meras impressões, belas superfícies em que a realizadora consegue refletir as suas ideias temáticas, sociais e estéticas. Nas várias ocasiões em que as personagens olham diretamente para a câmara isto é particularmente evidente, com a sua interioridade pessoal, um território deixado por explorar.


 

Título Original: Mate-me por favor
Realizador:  Anita Rocha da Silveira
Elenco: Valentina Herszage, Dora Freind, Mariana Oliveira
Drama, Comédia, Terror | 2015 | 101 min

Mate-me por favor

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