Pororoca

15º IndieLisboa | Pororoca, em análise

Pororoca”, um drama sobre um pai cuja filha desaparece misteriosamente, é a mais recente jóia do Novo Cinema Romeno. Este é também um dos filmes em competição na mais recente edição do IndieLisboa, que começa já para a semana, dia 26 de abril. Não percas!

“Pororoca” pode não ser o melhor filme selecionado para a edição de 2018 do IndieLisboa, mas talvez contenha o melhor filme. Esta afirmação é um pouco críptica, mas será clara para quem tenha o privilégio de experienciar este impiedoso thriller romeno. Depois dos dez minutos iniciais, em que o realizador Constantin Popescu estabelece os ritmos da vida quotidiana de uma família, o filme precipita-se num enorme plano sequência de 15 minutos. Trata-se de um monumental feito de cinema, um ballet de conversas paralelas, movimentos casuais e observação naturalista. Um ballet que termina num pesadelo parental capaz de cortar a respiração a qualquer espectador. É um filme num plano e, se “Pororoca” não tivesse mais nada para oferecer, só a qualidade deste engenho seria suficiente para fazer deste projeto visionamento obrigatório.

Tal como todo o seu material promocional indica, “Pororoca” é um drama centrado no desaparecimento de uma criança na Roménia dos nossos dias. Popescu, fazendo bom uso das informações dadas ao espectador antes do filme, conta com o medo e ansiedade que um membro da audiência traz consigo para esta história. Como já dissemos, ele passa dez minutos a estabelecer a mundanidade da família protagonista, mas o conhecimento da audiência pinta uma pátina ominosa sobre até as mais adoráveis interações entre pai e filha. Quando o filme passa então para uma cena num parque infantil, onde não há cortes, onde não temos tempo para respirar ou piscar os olhos com medo de perder algo, então sabemos que algo terrível vai acontecer. Também sabemos que estamos nas mãos de um mestre realizador.

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“Nos confins do desespero, não há espaço para razão.”

Focamo-nos em Tudor, o pai sentado num banco, ao telefone, enquanto mantém sempre um olho atento nos seus dois filhos, a rapariga com um destino trágico e um menino mais velho. As duas crianças entram e saem de cena e do nosso olhar, testando a atenção do espectador. Na banda-sonora, ouvimos a querela de um homem que passeia o seu cão e uma velhota intrometida. Graças ao uso de grande profundidade focal, vemos toda a atividade em redor de Tudor. Fala-se de cães atacarem crianças, o espectador sente mais um calafrio de perigo iminente. A menina quer gelado, o pai quer fumar um cigarro, adultos amigos trocam turnos a olhar pelas crianças para se poderem ocasionalmente afastar para irem ao caixote do lixo ou comprar algo. Um instante em que o pai não consegue ver a filha ocorre, ela não aparece mais. Somente foram precisos uns segundos com os olhos desviados para a desgraça acontecer, tanto os de Tudor, como os do espectador.

Como os maiores génios do seu cinema nacional, Popescu usa a banalidade da sua mise-en-scène realista como uma lâmina afiada, perfeita para dissecar personagem e espectador. Neste caso, o golpe letal vem por meio da distração, do convite ao desvio do olhar de tal modo que, sem ninguém se aperceber, repentinamente o ecrã é assombrado pela ausência da figura infantil. Popescu, no entanto, não se fica pelo mero truque de manipulação do olhar, usando a câmara como máximo veículo de imersão do espectador na psicologia em cena. Especificamente, a câmara é como que uma extensão de Tudor, seguindo-o pelo parque na sua busca desesperada pela filha, na sua discussão histérica com outros pais presentes, na sua crescente perceção que algo terrível aconteceu, algo irreversível. Só quando Tudor pega no telefone para chamar as autoridades e informar a esposa é que aparece um corte.

O espectador pode respirar, mas os seus ouvidos ainda zumbem com os chamamentos de Tudor em busca da filha. Com a oportunidade para respirar não vem calma, somente mais desespero, pois a polícia parece ineficaz, a família distante apenas traz consigo especulações e conjeturas que nada ajudam e a relação do casal que perdeu a filha parece ir ser mais uma vítima desta tragédia. Tal evolução dramática nunca é particularmente chocante, mas a franqueza cáustica com que Popescu examina as recriminações silenciosas que vão separando o casal revela o olhar de um mestre observador de comportamento humano. Afinal, depois de termos testemunhado o desaparecimento da rapariga, será que não nos perguntamos se, na mesma situação, também teríamos desviado o olhar no momento errado? Se o nosso esposo tivesse sido aquele que se distraiu, não o culparíamos, por muito racionais que desejássemos ser? Nos confins do desespero, não há espaço para razão.

Não querendo revelar muito mais sobre a narrativa de “Pororoca”, basta dizer que este é um retrato sem igual do definhar de um homem que perdeu a filha e com ela o seu mundo e sanidade. Para esse efeito, Popescu torna ainda mais glacial o ritmo de observação naturalista, parecendo mais encantado pela monstruosidade da inação do que com qualquer tipo de movimento narrativo. Lentamente, vamos sendo testemunhas do resvale auto-destrutivo de Tudor, vamos observando amedrontados o modo como ele vai ficando demasiado magro para as suas roupas, como os seus olhos vão perdendo o brilho e o seu olhar se torna ora apático ou agressivo, como a sua postura se vai fechando sobre si mesma. Vemos como este homem, outrora um pai preocupado, se torna numa criatura antissocial que, quando está sentado no parque em que a menina desapareceu, parece exatamente o tipo de figura ameaçadora que pais preocupados quereriam manter longe dos seus filhos.

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“(…)o amor é glorioso, mas tem a capacidade para nos destruir(…)”

Muito louvor há que ser dado ao trabalho de Bogdan Dumitrache no papel de Tudor pois, sem ele, “Pororoca” nunca funcionaria, não obstante todo o virtuosismo do seu realizador. Passadas umas horas de sofrimento a roçar a apatia, a anestesia tonal do filme perde o seu efeito e, de repente, “Pororoca” explode numa sequência de violência animalesca, terminando a transformação de Tudor, o retrato de Dumitrache e a observação de Popescu com um ponto final sangrento. Por fim, chegadas estas conclusões surgem questões de difícil resposta. Qual é a razão para a existência e visionamento deste tipo de projeto, um filme que parece ser a materialização de um tipo de sofrimento humano que todos desejamos nunca sentir? Será uma documentação de como o amor é glorioso, mas tem a capacidade para nos destruir, para nos tornar monstros? Será somente um esforço por capturar uma realidade extrema e nos proporcionar um tipo de catarse demónica? Não há aqui respostas fáceis pois este não é um filme fácil. Em compensação, é um filme poderoso e isso é certamente mais valioso que uma obra agradável que nos deixe indiferentes.

“Pororoca” será exibido a 29 de abril e 4 de maio no âmbito do IndieLisboa. Para mais informações e compra de bilhetes, visita o site oficial do festival.

Pororoca, em análise
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Movie title: Pororoca

Date published: 21 de April de 2018

Director(s): Constantin Popescu

Actor(s): Bogdan Dumitrache, Iulia Lumânare, Constantin Dogioiu, Stefan Raus, Adela Marghidan

Genre: Drama, 2017, 152 min

  • Cláudio Alves - 85
85

CONCLUSÃO

Um retrato sublimado do desespero impotente de um pai que perdeu a filha e sua hedionda transformação num tipo de homem que ele mesmo temeria. Este filme de Constantin Popescu é uma montra para eletrizantes epítetos de virtuosismo formal, mas é o seu vislumbre às profundezas mais negras do coração humano que hão de ficar com o espetador muito depois de terem acabado de ver este pesadelo realista.

O MELHOR: Os primeiros 25 minutos do filme, especialmente o chocante plano sequência que, por si só, será já um filme de aterrador valor.

O PIOR: A invariável asfixia tonal do filme não é para todos os espetadores. Há quem prefira não ser emocionalmente agredido por um objeto cinematográfico, não obstante a genialidade da sua construção.

CA

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