O Mentor, em análise

 

poster o mentor Título Original: The Master

Realizador: Paul Thomas Anderson

Elenco: Joaquin Phoenix, Phillip Seymour Hoffman, Amy Adams

Género: Drama

Pris | 2012 | 144 min

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Paul Thomas Anderson não só nos tem deixado bem habituados, como tem reunido o dom da incapacidade de expressar em palavras o que o seu trabalho tem vindo a significar para o panorama do Cinema contemporâneo Americano. Palavras como “corajoso” e “excecional” começam a parecer obsoletas. Eis que, no horizonte, surge “O Mentor”.

Ao cabo do termo da Segunda Guerra Mundial, o marinheiro Freddie Quell chega a casa indeciso e quebrado, inseguro quanto ao futuro, até ao dia em que se deixa seduzir pelo carismático Lancaster Dodd, líder da Causa, uma organização de base religiosa que começa a tornar-se popular nos Estados Unidos no início dos anos 1950.

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Apesar de ser reconhecido como “o tal filme sobre a Cientologia”, a publicidade ao novo filme de Paul Thomas Anderson não é propriamente correta, ou sequer justa. Apesar de “A Causa” pedir uns quantos aspetos emprestados à organização criada por L. Ron Hubbard (além do paralelismo que pode ser estabelecido com qualquer outro “culto”), a verdade é que a dinâmica e natureza do seu funcionamento vão perdendo fulgor e importância à medida que Anderson se interessa mais em mergulhar na psique e mistérios de Freddie e do seu Mestre. São as ramificações decorrentes, cuja origem só podia advir de uma mente tão genial e críptica como a de Anderson (que escreveu o argumento e realizou o filme), que vão muito mais além.

O Mentor” exige paciência e diligência do espectador e em nenhum sentido é uma experiência leve ou fácil. A sua abordagem às personagens tem muito a dizer sobre as fundações da cultura Americana, desde o individualismo à cooperação, ou da liderança à servitude. E Anderson não precisa de grandes discursos precisos, ou de personagens históricas, ou de apontamentos celebratórios supérfluos para o fazer. A humanidade misteriosa e complexa nos seus filmes acabou por, ela mesma, desenterrar a alma de uma nação.

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Como “Haverá Sangue”, “O Mentor” estabelece um paralelo interessantíssimo com a disfunção Americana. Apesar de o posicionamento temporal ser preciso, a sua relevância atual é inegável, já que explora a dinâmica de uma nação que procura orientação até à iluminação, entre outras questões temáticas que uma análise superficial nunca poderia discorrer com a complexidade necessária, como o questionamento recorrente sobre a infinitude da vida e da alma, a dinâmica do tempo e do sonho, a relação entre Mestre e Discípulo, e um paralelismo particular e curioso entre o digital e o analógico pode ainda ser estabelecido – Anderson filmou em 65 mm (apesar do filme ser exibido em 70 mm), o que não deixa de conformar em natureza com os traumas de Freddie, que têm uma “impressão permanente” e são inapagáveis, em oposição à flexibilidade digital, que permite gravação, apagamento e reutilização num piscar de olhos.

Um segundo visionamento beneficia a experiência e equilibra em pratos mais bem calibrados a primeira metade, imensamente estimulante e entusiasmante, e a segunda, mais enigmática e complexa e consequentemente, mais distanciada – servindo o primeiro visionamento para o equivalente a observar e apreciar uma bela obra de arte e ser-se intrigado pela mesma, e o segundo para encorajar mais interpretação, reflexão, discussão e, quem sabe, um terceiro visionamento.

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O que não precisa de ser visto mais de uma vez para gerar certezas é o calibre das interpretações dos principais peões em jogo.

Como Freddie, Joaquin Phoenix é assustadoramente poderoso, alternando entre os disparos raivosos e a tristeza abaladora com uma energia descontrolada que o torna apavorante, ainda que revigoradamente relacionável com uma parte recôndita e obscura do nosso ser.

A fabulosa interpretação de Phillip Seymour Hoffman é assemelhada em toda a natureza a um vulcão. A aparência plácida e ponderada é sempre passiva de ser substituída por uma explosão inesperada.

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Em separado, são magníficos; mas juntos são uma força da natureza complementada, encaixando cada recanto com uma perfeição tão dinâmica e magnética como nenhum par conseguiu este ano. O confronto de ambos só encontra paralelo na eternal contenda entre o id e o superego: de um lado a besta indomável, de outro o treinador que aprecia a sua selvajaria, mas que anseia domá-la.

A personagem e performance de Amy Adams são comummente esquecidas, em detrimento de uma elaboração repetida sobre os feitos notáveis dos protagonistas masculinos, mas maior injustiça não poderia ser feita. A criação de uma mulher de natureza enganadoramente doce é notável, uma existência na sombra que é perturbadora em crescendo.

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Tanto a fotografia de Mihai Malaimare Jr. (o primeiro trabalho de Anderson sem o seu diretor de fotografia habitual, Roger Elswit, que não pode participar por conflitos de agenda), como a banda sonora original de Jonny Greenwood estão entre as mais belas e distintas do ano.

Uma das dificuldades de “O Mentor” está, no entanto mas não só, ligada à ausência de um clímax claro e assumido, especialmente quando a última base de comparação é a sequência final convulsa e explosiva do seu último filme “Haverá Sangue”.

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O Mentor” desobedece ao processo de aproximação que se constata noutros títulos, potencialmente mais emocionais na experiência, menos crípticos na forma. De facto, o novo filme de Paul Thomas Anderson tem um quê de impenetrável, o que nem sempre jogará a seu favor. Apesar de uma reflexão única sobre o caráter e condição humana que apetece esgravatar, conhecer, sorver, é como pegar numa mão cheia de areia e ver os grãos escorrer entre os dedos, enquanto observamos impotentes o seu abandono do nosso controlo.

Paul Thomas Anderson não faz Cinema de significado claro, ou de configuração decifrável com a ajuda de uma qualquer enciclopédia interpretativa. Anderson faz Cinema quase interativo, onde o espectador é obrigado a dar algo de si, participar, espremer a laranja pelas próprias mãos. O grau de participação é, contudo, unicamente determinado por quem vê e, nesse sentido, “O Mentor” pode ser o que é à superfície e nada mais, ou um infindável baú de interpretações que nunca serão certas ou erradas. Cada abordagem é tão válida como a outra.

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Depois de dois visionamentos o filme continua a ser um mistério, mas mais um mistério que precisa de ser aceite, do que propriamente escarafunchado. É, afinal, muito sobre isso que reza “O Mentor”, sobre aquilo que não controlamos e/ou entendemos, mas que mesmo assim temos de aceitar em toda a sua complexidade.

Mas são mistérios subliminares como os seus que se demoram na nossa mente muito depois de abandonarmos a sala. Em retrospetiva e tendo em conta a envergadura da carreira de Anderson, que encapsula clássicos modernos como “Boogie Nights”, “Magnolia” e “Haverá Sangue”, pode não ser um favorito óbvio e assumido dos espectadores mais assíduos. Mas tal como o enredo e a própria filmografia de Anderson se preocupam em elaborar, só o tempo lhe poderá convir o lugar certo nas páginas da história.

É Cinema mercurial, para cativar e admirar, mais do que propriamente estabelecer uma ligação emocional com o espectador – tem uma abordagem austera, implacável, quase glaciar. Muito à imagem de Kubrick, por exemplo. É o sonho vivo e materializado do eterno estudante de Cinema e uma adição meritória ao cânone formidável de Anderson sobre as falhas da natureza Humana.

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