Os Óscares e o público

2014 chegou ao fim na madrugada de domingo. Dia 22 de fevereiro, quase 23. Esta é uma verdade para um povo sem estado, sem língua, sem fronteiras. Um povo sem raça, religião ou ideologia política. Uma verdade para o povo dos cinéfilos, daqueles que respiram o ar das realidades fictícias e vivem sonhos gráficos em mundos inventados.

Para este estranho povo, esta tribo global, o calendário é diferente. O seu feriado nacional chama-se Óscares, e nesse dia um ano termina e um novo começa. Para os cinéfilos o dia dos Óscares é como a véspera do ano novo para o resto dos humanos, é o dia em que se forjam esperanças para o ano novo e, sobretudo, se analisa o ano que passou.

Os Óscares são como o Superbowl do cinema, como diria um norte-americano. Um europeu diria que a cerimónia dos Óscares é a final da Liga dos Campeões em versão cinematográfica. O dia decisivo. Os campeões finalmente se enfrentam numa derradeira e gloriosa batalha que determina o campeão máximo, o rei dos reis.

Entra em cena a cerimónia dos Óscares de 2014 (ou 2015, dependendo do ponto de vista). A octogésima sétima edição da maior gala do mundo do entretenimento. De todo o mundo acodem os melhores compositores, realizadores, cinematógrafos, guionistas, magos dos efeitos especiais e claro, deuses na terra, os incandescentes astros do grande ecrã. Os homens mais charmosos e as mulheres mais belas. Os grandes artistas do nosso tempo. Estão nervosos. Hoje pode ser a culminação das suas carreiras. Ou não…

O veredito final será entregue por uma obscura sociedade secreta que dita sentenças de glória ou fracasso.

O Óscar é a crítica máxima. O Óscar é o rei dos críticos.

birdman óscares

Entre todas as categorias dos Óscares há uma que se eleva sobre as demais. A grande distinção que marca o ano cinematográfico. Best Picture. O melhor filme. Este ano tivemos oito nomeados: Birdman (o grande vencedor), Boyhood, The Theory of Everything, Selma, Whiplash, American Sniper, The Grand Budapest Hotel The Imitation Game. Essencialmente oito dramas, dos quais apenas um entrou na lista dos trinta filmes mais bem sucedidos nas bilheteiras em 2014, e apenas três entraram na lista dos cinquenta maiores filmes do ano. Os critérios por detrás da escolha de Melhor Filme podem não ser extremamente claros, mas a partir destes dados podemos pelo menos deduzir que a Academia certamente não está muito preocupada com os gostos do público em geral.

Outro caso de omissão que chama a atenção diz respeito a um dos sleeper hits do ano. The Lego Movie angariou cerca de 470 milhões de dólares a partir de um budget de apenas 60 milhões, convertendo-se num dos grandes sucessos de bilheteira de 2014 e no quarto maior filme de animação de 2014 (perdendo apenas para Rio 2, Big Hero 6 e How to Train Your Dragon 2). Além de ter sido um enorme sucesso de bilheteira, The Lego Movie ressoou também com boa parte da crítica, transformando-o numa aposta quase segura para estar entre os nomeados e um dos principais favoritos na luta pelo “título” na sua categoria. No entanto não foi sequer nomeado, tendo o seu lugar sido ocupado por filmes bem menos conhecidos como The Boxtrolls ou Song of the Sea.

lego movie óscares

Estes casos parecem confirmar algo que já se sabe há algum tempo. As opiniões da Academia e do público estão divorciadas. Basta consultar rapidamente a lista dos trinta filmes mais vistos de 2014 para dar-se conta da extensão da discórdia. O público mundial está apaixonado pelos blockbusters e pelos grandes franchisesTransformers, The Hobbit, Guardians of the Galaxy, The Hunger Games, X-MenSpider-ManCapitão América, Godzilla Planeta dos Macacos dominaram os cinemas em 2014. A única propriedade intelectual original capaz de entrar no Top 10 do ano passado foi Interstellar. O filme de Christopher Nolan deslumbrou o público e foi também muito bem recebido pela crítica em geral, tendo sido capaz de proporcionar um grande espetáculo sem renunciar ao seu conteúdo intelectual.

De todos os nomeados ao Óscar de Melhor Filme nenhum entrou no Top 10 dos maiores filmes do ano e apenas um conseguiu entrar no Top 30. Mesmo nesse caso singular é preciso ter-se em conta as suas circunstâncias especiais, pois praticamente todas as receitas de American Sniper foram obtidas nos Estados Unidos onde o fator patriótico sem dúvida moldou o sucesso do filme.

american snipers oscares 2015

No fundo, o público e a Academia são um pouco como dois irmãos com personalidades opostas forçados a viver na mesma casa e a ver-se todos os dias. Os dois irmãos nunca partilharão as mesmas opiniões, mas a única forma de criar uma convivência suportável é fazendo concessões, mostrando alguma flexibilidade.

Isto é algo que a Academia parece não entender. Tal e qual como um miúdo disposto a fazer prevalecer a sua vontade o tempo todo. Obviamente, isso não é possível no longo prazo, já que o outro irmão interpretará (corretamente) essa atitude como má vontade e não fará por sua vez qualquer esforço para chegar a um acordo necessário para uma convivência saudável.

Ao distanciar-se do público a Academia está basicamente a distanciar-se da sua família. Dos amantes do cinema. Sejam eles parte do grande público ou pessoas com gostos mais seletos mas que gostam de ir ao cinema para ver filmes divertidos de vez em quando. O que é certo é que a academia deve fazer concessões pois sem o público a Academia não é nada.

óscares 2015 guardians of the galaxy

O que confere valor ao Óscar é o reconhecimento, não só da Academia mas também do público. O que confere valor à gala são as milhões de pessoas que a acompanham sentadas nos seus sofás no mundo inteiro, muitas vezes dispostas a sacrificar amplas horas de sono para fazer parte de um momento singular de celebração da magia do cinema. Mas se as coisas não mudarem talvez num futuro até nem muito distante as pessoas já não estejam dispostas a perder horas de sono para ver uma gala em que se dão prémios a filmes que elas não viram ou dos quais não gostaram. Nesse dia um Óscar já não será um Óscar. Nesse dia um Óscar será apenas um prémio qualquer.

A única forma de evitar que isso aconteça é escutando o público. Fazendo algumas concessões. Chegando a um acordo. Nós temos os nossos filmes mas vocês também têm os vossos. Nomeia-se um Boyhood mas também se nomeia um Interstellar ou um Guardians of the Galaxy. Ambos tipos de filme têm valor, embora tenham características diferentes. Se os Óscares quiserem manter-se relevantes no século vinte e um devem refletir a opinião da Academia mas sem esquecer que, no fundo, sem o público não existe espetáculo. E, tal como o próprio Birdman diz, o público adora os seus blockbusters

Bruno Vargas

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *