Rumo à Outra Margem, em análise

Rumo à Outra Margem é um drama sussurrado em que elementos sobrenaturais pontuam uma narrativa sobre perda, ressentimentos e a dor de continuar a viver depois de uma tragédia pessoal.

No panorama do cinema japonês, o nome de Kiyoshi Kurosawa é usualmente associada ao cinema de terror, o J-horror que atingiu píncaros de popularidade internacional no início deste século. Para quem se familiarizou com este realizador devido a esses populares filmes de terror, a serenidade meio entediante de Rumo à Outra Margem, o seu mais recente filme, será um desafio. No entanto, para uma audiência que tenha algum afeto pelas obras mais gentis do autor, como Sonata de Tóquio, esta incursão pelo mundo do drama matrimonial, executada em ritmos lentos, serenos e insistentemente contemplativos, não será, à partida, o tipo de incontornável soporífero que poderá ser para muitos cinéfilos com erróneas expetativas.

O filme tem como protagonista uma jovem viúva que trabalha como professora de piano para crianças, Mizuki. Quando a encontramos, passaram três anos desde o desaparecimento do seu marido, e, um dia, aparece-lhe na cozinha o espectro do seu falecido companheiro, Yuzuke. O seu corpo há muito que foi consumido por caranguejos, sendo que apenas a memória e esta aparição corporal marcam a sua existência. Reunida com este espírito de desconcertante materialidade, Mizuki parte com ele numa viagem pelos lugares por onde, na sua viagem até à sua esposa viva, o espectro havia passado e habitado. A jornada que se segue é algo reminiscente de Orfeu e sua amada, mas aqui os géneros são invertidos, e o pano de fundo não é o submundo, mas sim a frieza da realidade dos vivos, onde cicatrizes emocionais são meticulosamente arranhadas, e a catarse é, a pouco e pouco, manifesta e usada como um bálsamo. Todo o exercício é, aliás, uma espécie de revisionismo espiritual do mitori, uma tradição japonesa que consiste no acompanhamento dos doentes até à sua eventual morte e passagem a outra existência, em que os seus entes queridos vivem em constante comunhão com eles até esse derradeiro momento de transição.

Rumo à Outra Margem

No entanto, não é apenas a barreira entre a vida e morte que interessa a Kurosawa, mas também as paredes invisíveis que separam duas pessoas, especialmente os indivíduos que compõem um casamento, que por sua vez, na visão deste autor e nesta específica narrativa, emerge como um labirinto de muralhas imateriais e silêncios sufocantes que escondem segredos e arrependimentos. Ao longo da viagem emocional e geográfica do casal, vamo-nos progressivamente apercebendo de quão calcificados os dois se encontravam em vida, separados um do outro e fossilizados nessa distância. Isto parece ter-se estendido a todo o mundo no caso de Mizuki, cuja apatia depressa coloca em questão a sua vitalidade. Afinal, nesta história de fantasmas quem está mais vivo, a viúva paralisada pela dor ou o espírito de um morto?

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Na concretização de tais dramas pessoais, a prestação dos dois atores principais é de monumental importância. Como o espectro, Tadanobu Asano é uma figura de leve competência, conseguindo, mesmo assim, transmitir uma das mais dolorosas sugestões do filme, a que esta versão espectral de Yusuke poderá ser um muito mais empático e humano marido e companheiro que a sua versão viva havia sido. Por sua vez, Eri Fukatsu como Mizuki é um pequeno milagre de confusão emocional telegrafada através de uma glacial austeridade expressiva. Nas suas mãos, esta protagonista nunca se torna completamente distante e inescrutável, sendo que, momentos como a confrontação de uma outra mulher que havia conhecido seu marido, ganham um grande poder na simples observação da atriz, cujos silêncios e fugazes olhares representam oceanos de histórias passadas sem nada ter de ser verbalizado.

Rumo à Outra Margem

Ambos os atores fogem a quaisquer epítetos melodramáticos, algo que também se manifesta na abordagem diretorial de Kurosawa. A introdução do elemento sobrenatural é particularmente exemplar desse tipo de serenidade casual que permeia por todo o filme. Aí, à audiência é concedido acesso íntimo à vida solitária da sua protagonista, vivendo a sua apática existência num apartamento de visual austero, mas elegante. Repentinamente, uma figura aparece no espaço vazio, mas Mizuki não parece fazer grande alarido de tal aparição, e a própria linguagem formal do filme não sofre qualquer alteração sísmica, com apenas uma leve mudança de iluminação a fazer de apontamento dramático. Nesta sua apresentação completamente casual e nunca espetacular dos eventos sobrenaturais, há algo de Weerasethakul na direção de Kurosawa, algo completamente distante de padrões narrativos típicos do drama ocidental, onde tal evento seria merecedor de alguns histrionismos cinemáticos, completamente distintos dos tons desta obra, austeros, subtis, e silenciosos, sem gritos ou fútil expressão.

Todo o edifício cinematográfico de Rumo à Outra Margem é um grande exemplo de uma estética e formalidade tipicamente nipónica, com a arquitetura e os interiores de ambientes domésticos a serem particularmente enfatizados pela mise-en-scène, cuja serenidade visual é ocasionalmente violada pela incongruente pincelada de cor que é o casaco amarelo usado por Yusuke. Pequenos detalhes de mobília, e sua disposição no espaço, conseguem ser tão ricos em informação humana como as complicadas caracterizações dos seus protagonistas, algo que se vai tornando crescentemente óbvio à medida que a viagem do casal se desenvolve, com três visitas e estadias a marcarem este final da sua relação. Apenas a música do filme parece trair esta harmonia formal, com os uivos lacrimosos do piano a infetarem a banda-sonora com uma inelegante sentimentalidade, que parece trair o resto da abordagem de Kurosawa, especialmente nos momentos mais decisivos do que é, essencialmente, uma lua-de-mel post-mortem.

Rumo à Outra Margem

Apesar desse passo em falso que é a música, a formalidade de Rumo à Outra Margem consegue conjurar belos momentos de quieto êxtase. Comoventes passagens em que barreiras entre passado e presente, vida e morte se diluem e os principais temas do filme são expostos de modo gentilmente eficaz. A aceitação que é preciso seguir em frente depois da dor da perda, por exemplo, é um tema que atinge sua apoteose estética na primeira das três visitas feitas pelo casal. Aí, outro espírito existe como se ainda vivesse, construindo um mausoléu de tempo congelado à sua volta. Quando este finalmente se apercebe da sua condição e passa para outro patamar de existência espiritual, é como se o tempo finalmente tivesse permissão de se manifestar. Uma casa ordenada torna-se, da noite para o dia, uma ruina, e uma parede de flores cortadas de revistas revela-se, não como uma colagem de cores primaveris e cheias de vitalidade, mas como um amontoado de papel envelhecido que vai caindo da parede, como folhas mortas a separarem-se da árvore que lhes deu vida. Mesmo na morte, há algo de organicamente belo e natural, assim como necessário.

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Infelizmente, os momentos mais intrigantes do filme, como essa primeira visita ou a introdução de Yusuke, encontram-se no seu primeiro terço, sendo que a obra se vai tornando progressivamente redundante e cansativa à medida que narrativa progride. Há uma difusa camada de névoa que separa o espetador da realidade humana a ser retratada e, na sua frieza e distância, Kurosawa parece ter caído no erro da apatia para com o seu material. Ou talvez não seja propriamente o realizador a cair nas profundezas da indiferença, mas sim a sua audiência, o que é ainda mais trágico. Ironicamente, apesar de tudo isto e da declarativa frieza da sua protagonista, Rumo à Outra Margem é, sem sombra de dúvida, o mais sentimentalista e sacarino de todos os filmes deste autor, o que não o impede de conseguir incluir algumas ideias mais amargas como a vida, enquanto conceito existencial. Ela não é apresentada como algo necessariamente positivo ou agradável, existindo sempre a triste sugestão que a vida não é mais que uma forma de acumular mágoas, ressentimentos, dúvidas e corrosivos arrependimentos. Poderemos não concordar, mas há algo de poderoso, incisivo e agradavelmente ácido em tal conclusão.

Rumo à Outra Margem

O MELHOR: Toda a sequência que retrata a primeira aparição de Yusuke.

O PIOR: A horrenda banda-sonora que, apesar de agradáveis melodias, é incrivelmente inapropriada para o filme em que se insere.


 

Título Original: Kishibe no tabi
Realizador:  Kiyoshi Kurosawa
Elenco: Eri Fukatsu, Tadanobu Asano, Masaaki Akahori 
Leopardo Filmes | Drama | 2015 | 127 min

Rumo à Outra Margem

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