100% Camurça, em análise
A moda mata, pelo menos assim é no universo tresloucado de “100% Camurça”, a nova maluquice cinematográfica de Quentin Dupieux. Este filme é uma das fabulosas novidades da Cinema BOLD.
O dadaísmo foi um importante movimento artístico que nasceu na Europa durante o rescaldo da Primeira Guerra Mundial. Tratava-se de uma exaltação do absurdo, uma negação da lógica, dos preceitos e da estética académica, da própria instituição que é a Arte. As suas obras eram afrontas desavergonhadas, laivos de irracionalidade deliberada, raiva anticapitalista a resvalar para a loucura, o êxtase sem nexo e sem beleza. Alguns dos seus maiores nomes, como Marcel Duchamp, chegaram a explorar o dadaísmo em cinema, mas o movimento nunca teve grandes pernas nesse mundo. Pelo menos, assim parece. Afinal, podemos facilmente listar exemplos de filmes expressionistas, surrealistas e até aqueles ligados ao impressionismo. Dadaísmo, contudo, é outra história.
Fora do mundo da curta experimental, pouco se encontra desse absurdo anti-Arte no cinema moderno. Talvez por isso, a obra do francês Quentin Dupieux seja tão refrescante, possuidor da pátina da vanguarda e do risco criativo, mesmo quando os resultados são mais fracasso que triunfo. No passado, o cineasta já fez um filme sobre um pneu serial killer e uma odisseia sobre a busca pelo gemido de dor perfeito, mas “100% Camurça” é talvez a sua mais bizarra criação. De certo modo, a premissa desta obra é mais realista que esses devaneios do passado. Realista é um termo aqui usado somente em comparação com o resto da filmografia de Dupieux. Realismo é algo que não se encontra muito neste filme com nome de têxtil.
De forma muito básica, “100% Camurça” é a história de um casaco. Certo dia, Georges, um homem recentemente divorciado e em plena crise de meia-idade, compra o dito casaco de camurça vintage, uma ação que lhe muda por completo a vida e a identidade. Como que possuído por uma folia misteriosa, ele viaja rumo a uma remota vila alpina e lá arrenda um quarto de hotel manhoso, pavoneia-se com a nova vestimenta e acaba por enganar uma empregada de bar. A ela, Georges diz que é um cineasta em busca de localizações para o seu próximo projeto, chegando mesmo a contratá-la para fazer a montagem de algumas imagens preliminares.
Inebriado pelo engodo e pelo apelo demoníaco da camurça, Georges compra uma câmara e um livro sobre como fazer cinema, aventurando-se pelo mundo do home vídeo e do filme snuff. Da documentação narcisista, ele passa a realizador de cenas de ação sangrenta onde, ao invés de efeitos especiais, é carnificina a sério que preenche o vídeo de má qualidade. Ou seja, depois de realizar um filme sobre um pneu assassino, Dupieux agora assinou a história sobre um casaco assassino. Dizemos que o casaco mata e não que Georges mata pois, efetivamente, o homem e seu figurino são indissociáveis. A partir do momento em que Georges veste o casaco, o compra e o possui, ele e o casaco são um só.
Tudo isto o realizador filma com estoicismo absoluto, sublinhando o absurdo através da paradoxa mundanidade com que este é filmado. Há uma secura perturbadora no humor, uma sinceridade venenosa que não deixa lugar para distanciamento irónico e força o espectador a ter a sua face esfregada na irracionalidade do homem-casaco. Os atores só auxiliam a abordagem afetadamente desafetada do realizador, interpretando seus papéis como um meio termo entre zombies risonhos e psicopatas narcotizados. Uma coisa é certa, Jean Dujardin já não era tão extraordinário desde que ganhou o Óscar pelo artista. Vê-lo render-se à loucura de Dupieux é um espetáculo que se tem que ver para crer.
Tanta é a doidice e o desanexo da razão, que nos sentimos seguros na categorização de “100% Camurça” como uma obra de cinema dada. Pelo menos, proto-dada, visto que há um convencionalismo estético e formal que mantém alguma parte do filme na terra dos sãos. É evidente, contudo, que as intenções de Dupieux e companhia limitada não são divorciados da realidade ou necessariamente anti-Arte. Como muitos dos dadaístas de outrora, este cineasta revolta-se contra o status quo e cospe nos bons costumes com suas críticas anticapitalistas. “100% Camurça”, por exemplo, é facilmente encarado como uma impiedosa paródia de uma sociedade de consumo, onde o materialismo chegou a tais píncaros que um homem é a roupa que veste e nada mais que isso.
100% Camurça, em análise
Movie title: Le daim
Date published: 24 de June de 2020
Director(s): Quentin Dupieux
Actor(s): Jean Dujardin, Adèle Haenel, Albert Delpy, Coralie Russier, Laurent Nicolas, Marie Bunel, Pierre Gommé, Caroline Piette, Youssef Hajdi
Genre: Comédia, Terror, 2019, 77 min
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Cláudio Alves - 75
CONCLUSÃO:
Filmado com disciplina, “100% Camurça” é uma rigorosa espiral de demência e excentricidade. Jean Dujardin brilha como um homem possuído pelos encantos de um casaco vintage e Adèle Haenel é sua discípula cinéfila, tão pronta a matar pela camurça como o protagonista.
O MELHOR: O trabalho de Dujardin é sem mácula e sem humanidade, um homem drenado da sua condição de pessoa e reduzido a um objeto.
O PIOR: Como acontece com todo o cinema de Dupieux, por muito que se admire a audácia e a provocação do filme, também fica o sentimento que era possível ir muito mais longe com o conceito. Quer seja por falta de recursos ou de imaginação, “100% Camurça” parece demasiado pequeno para a grandiosidade da sua loucura.
CA