Safari, em análise
Ulrich Seidl volta a chocar e provocar as audiências em Safari, o seu mais recente documentário sobre o turismo de caça na África dos nossos dias.
Muitas vezes, menosprezamos a forma como um documentário é filmado em prol de uma sobrevalorização da sua tese e seu conteúdo informativo. No entanto, o cinema é um meio de expressão audiovisual, pelo que o modo como algo é apresentado, poder-se-ia dizer, é ainda mais importante do que o que está a ser apresentado em si. Aliás, é na forma, que um realizador de documentários apresenta uma parte importante da sua tese cinematográfica, sendo que mesmo o anti-estilo autoral de realizadores como Frederick Wiseman demonstra um propósito lógico e de importante reflexão estética e concetual.
Seguindo esta linha de pensamento, é justificável afirmar que, no panorama do cinema documental contemporâneo, existem poucos autores tão formalmente magistrais como Ulrich Seidl, cuja precisão estética é uma parte incontornável das suas explorações humanas, políticas, sociais e económicas. No seu repertório estilístico, é de particular destaque o modo como o cineasta austríaco filma entrevistas, escolhendo uma abordagem estudada e de uma teatralidade impossível de ignorar, mesmo pelo espectador mais desatento. Quando a norma são as entrevistas em plano médio ou close-up em que os entrevistados olham para um ponto ao lado da câmara, esta abordagem de Seidl é de uma monstruosa idiossincrasia e no seu mais recente filme, Safari, o próprio Seidl leva esse seu estilo a surpreendentes extremos.
Aqui, uma série de austríacos que passam férias em África e se divertem a caçar animais exóticos são entrevistados nas suas casas, em composições perfeitamente simétricas, onde o elemento humano é cuidadosamente disposto na metade inferior da composição, de modo a que o topo da imagem seja consumido pelas colossais quantidades de cabeças empalhadas que lhes decoram as paredes, quais troféus valerosos da matança. Nestes cenários, eles olham diretamente para a câmara, parecendo quase atores em palco a confrontarem a sua audiência, numa preparação tão obviamente artificial e manienta que da rigidez floresce um tipo de hilariante comédia de desconforto e grotesco, antes, é claro, de o horror das suas palavras ser finalmente assimilado e refletido pelo espectador.
Dizemos isto pois, ao longo das entrevistas que Seidl capturou, estes austríacos ricos e com uma paixão absoluta pelo prazer de matar animais por desporto, expressam as suas visões sobre a caça, seu tipo de turismo e, mais preocupante de tudo, seu estatuto e superioridade face às populações africanas, suas nações e cultura. O realizador de Safari pode não oferecer grandes comentários verbais aos seus sujeitos, mas o modo como ele monta os seus discursos cria um encadeamento de crescente hipocrisia e privilégio cego. Basta, por exemplo, ouvirmos o modo como estas pessoas se acham no direito, enquanto seres mais desenvolvidos e pessoas de meios, de procurarem o seu entretenimento na carnificina. Quando um dos principais promotores deste tipo de turismo começa a falar do meio ambiente e da importância da Natureza, a audiência só tem mesmo de começar a chorar devido ao horror hipócrita do que ele diz, ou então de se rir do monstruoso ridículo de toda a situação e suas inerentes contradições.
É claro que, como já acima mencionámos, Safari não se reduz a uma simples exploração da mentalidade por detrás do modo como europeus ricos se divertem a matar animais exóticos, mas também examina o modo como, validados pelo seu próprio poder monetário, estas pessoas se veem no direito de olhar para as nações africanas como seu recreio e para a sua população como animais. Veja-se, por exemplo, o modo como um homem fala de como se sente injustiçado porque, na sociedade atual, o seu modo de pensar em África como um mundo subdesenvolvido cheio de pessoas incapazes de se governarem pode ser considerado racista. Não se enganem, ele afirma, ele não é racista, afinal, ele apenas quer ajudar os menos afortunados que ele.
Guiando-se pela perspetiva dos seus objetos de estudo, Seidl nunca entrevista os servos africanos que tornam possíveis todo o luxo e despreocupação com que os turistas austríacos vivem, mas isso não o impede de para eles virar a sua câmara. Duas das sequências mais aterradoras deste filme testemunham o modo como os animais são processados depois de terem sido mortos pelos turistas e de estes terem tirado suas gloriosas fotografias com os cadáveres em pose. Longe dos olhos dos caçadores, cabe aos servos silenciosos o trabalho de desmembrarem, eviscerarem, esfolarem e prepararem os animais para o empalhamento. Nunca fugindo à oportunidade de nos chocar, Seidl mostra estes processos em toda a sua macabra espetacularidade, olhando com atenção o modo como uma zebra é esfolada para se guardar a sua pele, ou como uma girafa tem de ser esvaziada dos seus órgãos antes de se começar a preparar a sua cabeça para ser montada nas paredes dos caçadores, juntamente com os outros troféus.
Num dos momentos de maior hipocrisia nos discursos dos caçadores, uma mulher afirma que o que eles fazem não é matar os animais. “Matar” implica algo grosseiro e sistemático como os matadouros, o que estes caçadores fazem é algo mais nobre e honroso tanto para o humano como para o animal. Uma coisa é certa, ela nunca viu o trabalho que acontece por detrás das cenas, depois dessa já referida fotografia do caçador e sua presa, pois não há nada de honroso ou nobre na indústria que se forma em volta destes europeus endinheirados e seu gosto pelo sangue e peles de animais exóticos como as já referidas zebras, girafas, mas também leões, leopardos, elefantes, antílopes e muitos outros. Desde que o trabalho sujo fique distante dos seus olhos e narizes, estas pessoas podem viver nas suas ilusórias ideias de nobreza e benevolência.
No final, Safari não é tanto um filme que critique de modo absoluto o desporto da caça, mas sim uma obra que disseca e examina um tipo muito particular de turismo e todas as complexas teias de preconceitos, privilégios e injustiças sociais que estão subjacentes à sua existência e prosperidade. Mais do que a sua sede assassina, o que Seidl mais encontra de monstruoso nestes seus compatriotas é o modo como eles mentem a si mesmos e vivem num castelo de hipocrisia, onde se mantêm a uma distância segura de qualquer tipo de realidade desagradável que lhes pudesse quebrar as suas estudadas ilusões de grandeza e legítima superioridade. Em resumo, como toda a obra deste iconoclasta austríaco, Safari é uma obra difícil e chocante, mas poderosa, cáustica e cheia de humor negro.
Já tiveste a oportunidade de ver este filme?
Safari, em análise

Movie title: Safari
Director(s): Ulrich Seidl
Genre: Documentário
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Cláudio Alves - 80
CONCLUSÃO
O MELHOR: A formalidade rígida de Seidl, especialmente as composições geométricas que salientam a macabra decoração das paredes cheias dos troféus da caça e da apropriação de peças de arte tradicional africana.
O PIOR: A desumanidade que mancha todos os filmes de Seidl. Enquanto a sua raiva crítica é louvável, seria interessante ver um documentário de Sedil em que os seus sujeitos alguma vez se exibissem como algo menos maligno que uma coleção de monstros sob forma de pálidos austríacos.





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