© NOS Audiovisuais

Vice, em análise

Nomeado para oito Óscares, incluindo Melhor Filme e Melhor Ator, “Vice” é uma cáustica dramatização da vida do ex-vice-presidente dos EUA, Dick Cheney, com Christian Bale e Amy Adams nos papéis principais.

Depois de uma carreira feita à base de comédias deliberadamente estúpidas com Will Ferrell em lugar de musa, Adam McKay virou-se para o cinema político. Seu tom continua a ser jocoso, seus mecanismos continuam a parecer evoluções desajeitadas de fórmulas de “Saturday Night Live”, mas há agora uma seriedade concetual a orientar os esforços deste cineasta, uma raiva interior que floresce do ultraje para com uma América que se deixou cair na ruína e no degredo e parece estar obcecada em arrastar o resto do mundo consigo.

Pub

Em 2015, tais preocupações produziram “A Queda de Wall Street”, uma paródia Brechtiana pela qual McKay explicou, com tanta condescendência como indignação, os fatores que levaram à crise económica de 2008. O filme valeu-lhe um Óscar para Melhor Argumento Adaptado e, quatro anos depois, McKay volta a trazer às salas uma comédia política sobre os horrores que a América faz a si mesma e ao resto do mundo. Desta vez, contudo, longe de pintar uma crítica coletiva de toda uma sociedade e instituição como Wall Street, o foco do cineasta é mais preciso.

oscares 2019 vice critica christian bale amy adams adam mckay
Uma cinebiografia política com toques de humor à la SATURDAY NIGHT LIVE.

“Vice” é, de forma básica, uma cinebiografia de Dick Cheney, o demoníaco vice-presidente de George W. Bush Júnior. Ele que deteve mais poder que qualquer outro homem na mesma posição na História dos EUA e usou esse mesmo poder, assim como o terror gerado pelo 11 de setembro, para conceber um flagelo contra o Médio Oriente que até hoje se mantém injustificável a não ser a nível de interesses petrolíferos. O mundo em que vivemos e seu caos são, em parte, o resultado das ações de Cheney, um dos maiores monstros que a recente História já viu.

Para qualquer pessoa que se tenha mantido atenta à política internacional nos últimos 20 anos, tais afirmações serão tão óbvias que até dará vontade de revirar os olhos. Infelizmente, há muitas pessoas que se mantêm ignorantes do modo como o seu mundo é definido pela política. McKay sabe isso e sua abordagem é sempre uma que supõe a ignorância e desinteresse do espectador. Há algo de vil e desagradável em tal relação entre artista e os consumidores de sua Arte, mas é difícil acusar McKay de estar errado. Se há algo que “Vice” consegue fazer, é galvanizar o espectador e levá-lo aos píncaros da indignação.

O realizador produz tal efeito ao orientar seu filme tanto pela fórmula de uma biografia convencional como pela ironia de um sketch paródico. Em suma, McKay cria uma crítica política que é facilmente engolida pelo espectador como um objeto merecedor de prestígio e atenção, mas, ao mesmo tempo, está sempre a entreter e a piscar o olho à audiência. Isso tanto ocorre ao nível do tom de cenas individuais, como da própria estrutura e execução formal da obra.

Pub

Lê Também:
A Queda de Wall Street, em análise

A meio do filme, por exemplo, McKay inclui créditos finais, sublinhando como, a certa altura, parecia que Cheney ia abandonar a vida política. Como todos sabem, tal não aconteceu e assim esse engenho que brinca com a própria linguagem do cinema, acaba por funcionar como um murro no estômago e o gatilho que instiga gargalhadas. Rimo-nos das brincadeiras de “Vice” e por entre esses momentos humorísticos vamos sendo expostos ao horror que é a subida ao poder de um homem amoral e sem valores, um demónio oportunista que está pronto a sacrificar tudo e todos, até a sua própria filha, em nome de caché político.

Convém clarificar que tal irreverência formal e humorística é tanto o elemento mais característico de McKay como seu maior obstáculo para atingir grandeza artística. “Vice” funciona sempre melhor quando abandona a ironia e o humor e deixa que a sua raiva interior mostre a cara. De modo semelhante, o filme tende a beneficiar das passagens em que McKay acalma seus impulsos de experimentação estrutural e floreados estilísticos, deixando cenas respirar. No início, as cambalhotas cronológicas que a narrativa faz, assim como a presença de um narrador que só é explicado duas horas depois, são bem difíceis de entender.

Pub

No centro de tudo isto, Christian Bale dá vida à criatura infernal e volta a transformar seu corpo de forma radical para o fazer. Seus esforços pagam dividendos, sendo esta uma das grandes interpretações do ator que tanto reproduz a fisicalidade degradante de Cheney como sua total falta de carisma enquanto figura pública. Bale torna-se num buraco negro, obliterando a sua presença de estrela de cinema em nome de um vazio que repugna e nunca fascina. Será fácil ver neste vácuo uma caracterização anémica, mas o ator torna a falta de interioridade da sua personagem numa mais valia.

oscares 2019 vice critica adam mckay amy adams christian bale
Christian Bale é extraordinário no papel principal.

Não podemos dizer o mesmo do resto do elenco, sendo que Amy Adams, em particular, parece estar meio perdida a tentar dar vida a uma Lady Macbeth desprovida de evolução psicológica legível. Como tudo em “Vice”, ela tenta e seu esforço é mais do que visível. Assim também acontece com o argumento e sua estrutura bizantina, com a fotografia rica em textura, com a montagem enlouquecida e a banda-sonora opulente. “Vice” é um filme sem contenção, mesmo a nível de esforço artístico, e isso tanto sublinha seu valor como evidencia suas falhas.

Pub

Curiosamente, e devido a tal maximalismo no precipício da húbris, o melhor filme com o qual comparar “Vice” nem é “A Queda de Wall Street”, mas “Nixon” de Oliver Stone. Despindo o filme de McKay de comédia, obtemos um animal cinematográfico bem semelhante à biografia do Presidente do escândalo Watergate. Tratam-se de obras a rebentar de raiva para com seus sujeitos e para com a passividade política da sua audiência, com retratos acídicos no centro das narrativas e um gosto por experimentação com montagem e fotografia que tende a ofuscar mais do que clarifica.

Como esse filme do passado, “Vice” é uma obra que exige admiração pela sua ambição, pela qualidade do seu ator principal e pelas intenções por detrás da sua criação. Contudo, é difícil não ver falhas na sua metodologia e ver como, algumas mudanças aqui e ali, mais contenção e nuance, poderiam ter dado origem a um clássico, talvez menos elétrico, mas ainda mais poderoso que o filme que efetivamente temos diante de nós. Enfim, é imperfeito, bombástico, feio e sem gosto, um monstro de filme para um político monstruoso. Nada podia ser mais apropriado.

Pub
Vice, em análise
Vice

Movie title: Vice

Date published: 14 de February de 2019

Pub

Director(s): Adam McKay

Actor(s): Christian Bale, Amy Adams, Sam Rockwell, Steve Carell, Tyler Perry, Jesse Plemons, Lily Rabe, Alison Pill, Eddie Marsan, Bill Camp, Shea Whigham, Justin Kirk, LisaGay Hamilton

Pub

Genre: Biografia, Comédia, Drama, História, 2018, 132 min

  • Cláudio Alves - 65
  • Daniel Rodrigues - 40
  • José Vieira Mendes - 60
  • Inês Serra - 65
  • Miguel Pontares - 63
  • Virgílio Jesus - 75
  • Catarina d'Oliveira - 65

CONCLUSÃO:

Pub

“Vice” é uma máquina de humor transgressivo e crítica política cujo combustível é a raiva e condescendência do seu realizador. No centro do drama, Christian Bale dá o corpo ao manifesto e retrata Dick Cheney em todo seu monstruoso horror. Os restos dos elementos do filme não chegam aos calcanhares do seu ator principal, mas bem tentam. Infelizmente, isso nem sempre é bom para a coerência tonal de uma comédia que funcionaria muito melhor se deixasse de tentar ser uma comédia.

O MELHOR: O buraco negro de carisma que é Chrsitian Bale no papel de Dick Cheney.

O PIOR: Algumas das piadas mais reacionárias e condescendentes do filme tendem a alienar o espectador mais do que o galvanizam. A última cena da obra, feita já a meio dos verdadeiros créditos finais, é particularmente terrível.

CA

Overall
62
Sending
User Review
4.25 (4 votes)
Comments Rating 0 (0 reviews)

About The Author


Leave a Reply

Sending