Vice, em análise
Nomeado para oito Óscares, incluindo Melhor Filme e Melhor Ator, “Vice” é uma cáustica dramatização da vida do ex-vice-presidente dos EUA, Dick Cheney, com Christian Bale e Amy Adams nos papéis principais.
Depois de uma carreira feita à base de comédias deliberadamente estúpidas com Will Ferrell em lugar de musa, Adam McKay virou-se para o cinema político. Seu tom continua a ser jocoso, seus mecanismos continuam a parecer evoluções desajeitadas de fórmulas de “Saturday Night Live”, mas há agora uma seriedade concetual a orientar os esforços deste cineasta, uma raiva interior que floresce do ultraje para com uma América que se deixou cair na ruína e no degredo e parece estar obcecada em arrastar o resto do mundo consigo.
Em 2015, tais preocupações produziram “A Queda de Wall Street”, uma paródia Brechtiana pela qual McKay explicou, com tanta condescendência como indignação, os fatores que levaram à crise económica de 2008. O filme valeu-lhe um Óscar para Melhor Argumento Adaptado e, quatro anos depois, McKay volta a trazer às salas uma comédia política sobre os horrores que a América faz a si mesma e ao resto do mundo. Desta vez, contudo, longe de pintar uma crítica coletiva de toda uma sociedade e instituição como Wall Street, o foco do cineasta é mais preciso.
“Vice” é, de forma básica, uma cinebiografia de Dick Cheney, o demoníaco vice-presidente de George W. Bush Júnior. Ele que deteve mais poder que qualquer outro homem na mesma posição na História dos EUA e usou esse mesmo poder, assim como o terror gerado pelo 11 de setembro, para conceber um flagelo contra o Médio Oriente que até hoje se mantém injustificável a não ser a nível de interesses petrolíferos. O mundo em que vivemos e seu caos são, em parte, o resultado das ações de Cheney, um dos maiores monstros que a recente História já viu.
Para qualquer pessoa que se tenha mantido atenta à política internacional nos últimos 20 anos, tais afirmações serão tão óbvias que até dará vontade de revirar os olhos. Infelizmente, há muitas pessoas que se mantêm ignorantes do modo como o seu mundo é definido pela política. McKay sabe isso e sua abordagem é sempre uma que supõe a ignorância e desinteresse do espectador. Há algo de vil e desagradável em tal relação entre artista e os consumidores de sua Arte, mas é difícil acusar McKay de estar errado. Se há algo que “Vice” consegue fazer, é galvanizar o espectador e levá-lo aos píncaros da indignação.
O realizador produz tal efeito ao orientar seu filme tanto pela fórmula de uma biografia convencional como pela ironia de um sketch paródico. Em suma, McKay cria uma crítica política que é facilmente engolida pelo espectador como um objeto merecedor de prestígio e atenção, mas, ao mesmo tempo, está sempre a entreter e a piscar o olho à audiência. Isso tanto ocorre ao nível do tom de cenas individuais, como da própria estrutura e execução formal da obra.
A meio do filme, por exemplo, McKay inclui créditos finais, sublinhando como, a certa altura, parecia que Cheney ia abandonar a vida política. Como todos sabem, tal não aconteceu e assim esse engenho que brinca com a própria linguagem do cinema, acaba por funcionar como um murro no estômago e o gatilho que instiga gargalhadas. Rimo-nos das brincadeiras de “Vice” e por entre esses momentos humorísticos vamos sendo expostos ao horror que é a subida ao poder de um homem amoral e sem valores, um demónio oportunista que está pronto a sacrificar tudo e todos, até a sua própria filha, em nome de caché político.
Convém clarificar que tal irreverência formal e humorística é tanto o elemento mais característico de McKay como seu maior obstáculo para atingir grandeza artística. “Vice” funciona sempre melhor quando abandona a ironia e o humor e deixa que a sua raiva interior mostre a cara. De modo semelhante, o filme tende a beneficiar das passagens em que McKay acalma seus impulsos de experimentação estrutural e floreados estilísticos, deixando cenas respirar. No início, as cambalhotas cronológicas que a narrativa faz, assim como a presença de um narrador que só é explicado duas horas depois, são bem difíceis de entender.
No centro de tudo isto, Christian Bale dá vida à criatura infernal e volta a transformar seu corpo de forma radical para o fazer. Seus esforços pagam dividendos, sendo esta uma das grandes interpretações do ator que tanto reproduz a fisicalidade degradante de Cheney como sua total falta de carisma enquanto figura pública. Bale torna-se num buraco negro, obliterando a sua presença de estrela de cinema em nome de um vazio que repugna e nunca fascina. Será fácil ver neste vácuo uma caracterização anémica, mas o ator torna a falta de interioridade da sua personagem numa mais valia.
Não podemos dizer o mesmo do resto do elenco, sendo que Amy Adams, em particular, parece estar meio perdida a tentar dar vida a uma Lady Macbeth desprovida de evolução psicológica legível. Como tudo em “Vice”, ela tenta e seu esforço é mais do que visível. Assim também acontece com o argumento e sua estrutura bizantina, com a fotografia rica em textura, com a montagem enlouquecida e a banda-sonora opulente. “Vice” é um filme sem contenção, mesmo a nível de esforço artístico, e isso tanto sublinha seu valor como evidencia suas falhas.
Curiosamente, e devido a tal maximalismo no precipício da húbris, o melhor filme com o qual comparar “Vice” nem é “A Queda de Wall Street”, mas “Nixon” de Oliver Stone. Despindo o filme de McKay de comédia, obtemos um animal cinematográfico bem semelhante à biografia do Presidente do escândalo Watergate. Tratam-se de obras a rebentar de raiva para com seus sujeitos e para com a passividade política da sua audiência, com retratos acídicos no centro das narrativas e um gosto por experimentação com montagem e fotografia que tende a ofuscar mais do que clarifica.
Como esse filme do passado, “Vice” é uma obra que exige admiração pela sua ambição, pela qualidade do seu ator principal e pelas intenções por detrás da sua criação. Contudo, é difícil não ver falhas na sua metodologia e ver como, algumas mudanças aqui e ali, mais contenção e nuance, poderiam ter dado origem a um clássico, talvez menos elétrico, mas ainda mais poderoso que o filme que efetivamente temos diante de nós. Enfim, é imperfeito, bombástico, feio e sem gosto, um monstro de filme para um político monstruoso. Nada podia ser mais apropriado.
Vice, em análise
Movie title: Vice
Date published: 14 de February de 2019
Director(s): Adam McKay
Actor(s): Christian Bale, Amy Adams, Sam Rockwell, Steve Carell, Tyler Perry, Jesse Plemons, Lily Rabe, Alison Pill, Eddie Marsan, Bill Camp, Shea Whigham, Justin Kirk, LisaGay Hamilton
Genre: Biografia, Comédia, Drama, História, 2018, 132 min
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Cláudio Alves - 65
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Daniel Rodrigues - 40
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José Vieira Mendes - 60
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Inês Serra - 65
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Miguel Pontares - 63
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Virgílio Jesus - 75
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Catarina d'Oliveira - 65
CONCLUSÃO:
“Vice” é uma máquina de humor transgressivo e crítica política cujo combustível é a raiva e condescendência do seu realizador. No centro do drama, Christian Bale dá o corpo ao manifesto e retrata Dick Cheney em todo seu monstruoso horror. Os restos dos elementos do filme não chegam aos calcanhares do seu ator principal, mas bem tentam. Infelizmente, isso nem sempre é bom para a coerência tonal de uma comédia que funcionaria muito melhor se deixasse de tentar ser uma comédia.
O MELHOR: O buraco negro de carisma que é Chrsitian Bale no papel de Dick Cheney.
O PIOR: Algumas das piadas mais reacionárias e condescendentes do filme tendem a alienar o espectador mais do que o galvanizam. A última cena da obra, feita já a meio dos verdadeiros créditos finais, é particularmente terrível.
CA