LEFFEST ’19 | Tommaso, em análise
Willem Dafoe é extraordinário na sua mais recente colaboração com o realizador Abel Ferrara. “Tommaso” é um gesto lacerante de auto-ficção e está em competição no Lisbon & Sintra Film Festival.
Desde o berço da expressão artística, que muitos têm sido aqueles que usam a sua Arte para exorcizar demónios pessoais. No cinema, onde a teoria de autor tem vindo a dominar o discurso há mais de meio século, isso é particularmente verdade. Hitchcock era um perito em usar o grande ecrã para reconfigurar as suas mais fortes ansiedades. Bergman fez da película o veículo para a sua autobiografia e expiação dos pensamentos mais íntimos. Ainda este ano, Shia LaBeouf fez de “Honey Boy” uma sessão de psicoterapia convertida em filme.
Essa lista é muito comprida e a ela se terá de acrescentar o nome de Abel Ferrara. O realizador americano tem vindo a fazer carreira através de contos de degredo urbano e pesadelos de masculinidade em crise, mas raramente se posicionou a si mesmo como o centro do drama. Em “Tommaso”, contudo, as dimensões autobiográficas do projeto são inegáveis. Se houvesse alguma dúvida, a mulher e filha da personagem titular são interpretadas pela família do próprio Ferrara e o apartamento em que a ação se centra é a residência do realizador em Roma.
De facto, as semelhanças entre Tommaso e Abel são infindáveis, dando ao projeto a desconfortável aura de uma confissão pública de pecados privados. A personagem é um realizador americano expatriado em Itália, onde tenta viver uma existência pacífica na companhia de uma esposa moldava e muito mais nova assim como a filha pequena dos dois. Entre o idílio doméstico e aulas de italiano, o artista também divide o seu tempo com workshops de atores e muitas frustrantes tentativas de compor o argumento para a sua próxima produção.
Há ainda as reuniões anónimas em que o antigo toxicodependente fala da sua sobriedade com outros doentes. É nesses interlúdios noturnos que Tommaso parece conseguir melhor exprimir o que lhe vai no coração, sendo que com a esposa há sempre uma barreira. Talvez seja a idade dela, talvez seja a diferença idiomática ou uma simples abrasão de personalidades incompatíveis. O que é certo é que este é um homem desesperado pela paz doméstica, mas está sempre a esbarrar contra obstáculos que não consegue transpor. Em caso de conflito, ele esboça um sorriso insincero e tenta engolir o sapo da sua intransigência.
É fácil ver neste gesto uma clara tentativa de fazer de Tommaso um mártir em relação às pressões da domesticidade. De facto, Abel Ferrara termina o filme com uma imagem hedionda do realizador enquanto cristão crucificado, efetivamente elevando as pressões mundanas de um artista em crise a níveis de justiça cósmica. Felizmente, Ferrara não passa todo o filme nesse registo de exagero estilístico e melodrama autobiográfico. Diríamos até que, em certas passagens, “Tommaso” revela uma fascinante capacidade de autocrítica da parte do cineasta envelhecido.
Tal como nos é apresentado na maioria do filme, Tommaso não é nenhum anjo ou um santo. Ele é um homem que já fez atrocidades contra si e contra os que o rodeiam, mas agora almeja pela redenção. Tommaso quer a bonança que vem depois da tempestade, só que a sua cabeça está sempre a ameaçá-lo com os ventos de mais uma tormenta. Tamanha ameaça manifesta-se usualmente sob a forma de desejos e ansiedades sinistras, fantasias mirabolantes que vão lentamente tomando o lugar da realidade.
Chegado o clímax sanguinário, já nem o espectador nem a personagem entendem se o que estão a ver é mais um devaneio onírico ou a real ação deste homem desesperado. Este cocktail de lancinante autocrítica e quedas em indulgências descontroladas fazem de “Tommaso” uma experiência tão frustrante como inspiradora. Trata-se de uma receita desequilibrada e sem coerência tonal, uma expiação que não consegue resistir à vontade de se tornar num elogio.
É uma prece por redenção que facilmente tomba na vingança misógina ou fantasia machista. Há interlúdios desnecessários com estudantes despidas e lascivas composições que pretendem tornar o realizador frustrado num ícone sexual pouco convincente. “Tommaso” é assim tão franco como é iludido e isso pode resultar numa experiência fascinante para fãs de Abel Ferrara, mas não deixa de ser um drama disfuncional.
No meio de tudo isto, dois elementos se posicionam acima das contradições problemáticas do restante filme. Há pouco a criticar na fotografia cristalina de Peter Zeitlinger, um habitual colaborador de Werner Herzog que aqui aplica os seus talentos à aglutinação de fantasia e mundanidade romana. O outro píncaro de qualidade é Willem Dafoe no papel principal. Este compincha de longa data de Ferrara tem-se vindo a tornar na principal musa do cineasta e a sua destilação de angústias masculinas é impressionante.
Mesmo quando o filme se deixa levar pelo excesso da comiseração própria, o ator mostra-se sempre capaz de contrariar tais impulsos, efetivamente dando a impressão de que a sua personagem é mais complicada do que realmente é. Pelo seu trabalho, “Tommaso” merece aplausos. De resto, este é um autorretrato para esquecer para todos que não sejam devotos seguidores de Ferrara.
Tommaso, em análise
Movie title: Tommaso
Date published: 21 de November de 2019
Director(s): Abel Ferrara
Actor(s): Willem Dafoe, Cristina Chiriac, Anna Ferrara, Stella Mastrantonio, Lorenzo Piazzoni, Alessandro Prato, Alessandra Scarci
Genre: Drama, 2019, 115 min
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Cláudio Alves - 40
CONCLUSÃO:
“Tommaso” é uma confissão tão desesperada quanto sincera, mas da sinceridade nem sempre nasce grande arte. Para mal dos pecados de Abel Ferrara, a sua expiação é entrecortada pelas indulgências megalómanas do costume e só as imagens da Roma contemporânea e a prestação consistente de Willem Dafoe se safam sem mácula.
O MELHOR: Dafoe.
O PIOR: A pestilência de machismo que o texto raramente examina e que consome todo o projeto. Isso e a crucificação final.
CA