"The United States vs. Billie Holiday" | © Hulu

The United States vs. Billie Holiday, em análise | Made in USA

Há pouco mais de um ano, a MHD teve a sorte de ter um dos seus críticos nos EUA. Durante a sua estadia em terras americanas, Daniel Rodrigues escreveu sobre vários filmes que estrearam no estrangeiro antes de chegarem a Portugal sob a alçada da rubrica “Made in USA“. Este ano, a situação é meio diferente. Cláudio Alves, Senior Editor da MHD, também escreve para um site americano, The Film Experience, e, como tal, tem acesso a vários títulos que ainda não estão disponíveis por cá. Decidimos aproveitar esta oportunidade para promover e analisar esses mesmos filmes. Assim, o leitor MHD pode estar a par de todas as novidades e acompanhar a temporada dos prémios estando bem informado. Para começar esta segunda temporada da rubrica Made in USA, vamos explorar “The United States vs. Billie Holiday”. O filme de Lee Daniels está presentemente nomeado para o Globo de Ouro de Melhor Atriz.

Os EUA são uma nação forjada em violência, suas fundações construídas em poças de sangue e ódio. Poderíamos dizer o mesmo de muitos países, especialmente territórios europeus (como Portugal!) que devem muita da sua boa fortuna ao crime do colonialismo. Contudo, foquemo-nos nos EUA agora. Aceitar que privilégios e confortos presentes provêm de horrores ancestrais é difícil, doloroso. Pior ainda é reconhecer que as injustiças antigas ainda persistem e que a vivência passiva faz de nós cúmplices por inação. Quando alguém ousa apontar para esse crime de quem nada faz, rara é a vez que esse grito de fúria não é respondido com indignação burguesa, violência reacionária, negação desesperada.

The United States vs Billie Holiday critica
© Hulu

Numa América dividida pela legislação segregadora onde o linchamento de pessoas pretas ainda não era reconhecida e devidamente castigada pela lei, a cantora Billie Holiday atreveu-se a por o dedo na ferida. A sua canção “Strange Fruit” descreve os corpos das vítimas de linchamento, suas bocas torcidas e o cheiro a carne queimada, seu peso a pender de árvores pela corda que parte o pescoço. Vindo de uma estrela tão popular como Holiday, a canção tornou-se num hino de revolta, num apelo à justiça que a sociedade branca não estava disposta a aceitar. Ela inspirou os marginalizados e ofendeu os privilegiados. Por esse suposto crime, pagou muito, tendo sido sistematicamente perseguida pelo FBI. Sob o pretexto da luta contras as drogas, as autoridades castigaram a cantora e tentaram silenciá-la. Ela resistiu até ao dia da sua morte, quando tinha somente 44 anos.

Tamanho é o legado de Billie Holiday que não surpreende que Hollywood já tenha tentado muitas vezes capturar o seu brilho. Diana Ross foi nomeada para um Óscar em 1972 por dar vida à cantora e, mais recentemente, Audra McDonald foi indicada para o Emmy por semelhante façanha. Agora, é a vez de Andra Day tentar fazer justiça a Holiday em “The United States vs. Billie Holiday”. Verdade seja dita, ela supera todas as suas antecessoras. Não só ela reproduz a sonoridade característica da estrela antiga como também dá corpo e alma ao manifesto, eviscerando seu espírito em nome da arte. Desde devaneios românticos a degredo toxicodependente, ela tudo representa com iguais partes de técnica e inspiração, capaz de encontrar genuína humanidade por entre os mecanismos da mimese perfeita.

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Por vezes, questionamo-nos se o realizador Lee Daniels não terá feito algum pacto com o Diabo e trazido Holiday de volta à vida para filmar esta obra. Infelizmente, para além de Day, “The United States vs. Billie Holiday” tropeça a caminho da glória e cai na mediocridade. Lee Daniels sempre foi um realizador caótico, mas este seu mais recente esforço parece simultaneamente demasiado desorganizado e demasiado convencional. Os ditames tradicionais do docudrama biográfico castram a loucura criativa do cineasta e resultam em muitas cenas repetitivas. Não fosse a estrondosa presença de Day, as muitas sequências musicais seriam intragáveis, tão invariável é a sua encenação.

Ocasionalmente, um laivo de inspiração mostra a face e temos momentos como o laivo de angústia que antecede a rendição integral de “Strange Fruit” ou as cenas de sexo que capturam o físico de Trevante Rhodes como se ele fosse uma divindade clássica. Infelizmente, além do seu carisma inato e do erotismo com que a câmara o adora, Rhodes é um dos maiores problemas do filme. Mais especificamente, a sua personagem é o maior erro de todos. Contar a história de Billie Holiday da perspetiva de um homem do FBI que a tenta apanhar, mas acaba por se apaixonar por ela, rouba muito do poder à fita. Esta devia ser a vida de Holiday, não um documento da sua perseguição. A perspetiva fraturada impede o drama de examinar o legado da sua personagem titular, suas especificidades culturais, seu impacto político.

The United States vs Billie Holiday critica
© Hulu

Por outras palavras, este é um trabalho que se propõe a investigar o que levava Holiday a cantar “Strange Fruit”, o que a levou a lutar pela canção e pela libertação da sua comunidade. No final, essa investigação não formula resultados e o que fica na memória são as roupas maravilhosas da diva, sua voz melodiosa. A mensagem perdeu-se pelo caminho. Há beleza visual e musical para compensar os deficits dramáticos, mas não podemos deixar de chorar a oportunidade perdida. Os ingredientes para um grande filme estão todos presentes, mas o argumento e a indisciplina da realização não conseguem ser superados. O todo é menor que a soma das partes e “The United States vs. Billie Holiday” acaba por ser mais um biopic fracassado como tantos outros que assombram todas as temporadas dos prémios.

Sobre o Autor

The United States vs Billie Holiday, em análise
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Movie title: The United States vs Billie Holiday

Date published: 23 de February de 2021

Director(s): Lee Daniels

Actor(s): Andra Day, Trevante Rhodes, Miss Lawrence, Rob Morgan, Leslie Jordan, Natasha Lyonne, Da'Vine Joy Randolph, Dusan Dukic

Genre: Biografia, Drama, Música, 2021, 130 min

  • Cláudio Alves - 50
  • Virgílio Jesus - 40
45

CONCLUSÃO:

Lee Daniels volta a fracassar na sua exploração da história afro-americana no grande ecrã. Felizmente, a beleza visual e sonora de “The United States vs. Billie Holiday” assim como o trabalho do elenco principal salvam o filme da desgraça. Todos deviam ver esta obra para apreciar a maravilha que é Andra Day no papel titular.

O MELHOR: A prestação arrebatadora de Day, a sensualidade de Rhodes, os figurinos glamourosos e a banda-sonora deliciosa.

O PIOR: O caos que é o guião, a atenção desmesurada que dá a Jimmy Fletcher e sua falta de curiosidade para com o impacto cultural e social de Billie Holiday na comunidade afro-americana que fez dela uma lenda.

CA

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