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Japão, na Ressaca e Renascimento do Pós-Guerra

Quem sabe, sabe. E a quem não sabe só faz bem estudar e aprender, sobretudo quando a informação está mais acessível do que nunca. Será útil referir que algumas das matérias online nem sempre evitam misturar água com azeite, mas será sempre possível, a alguém interessado em saber mais e com maior rigor, realizar a necessária separação das águas.

Dito isto, a informação disponível sobre o Cinema e a sua História não escapa a esta reflexão. Na verdade muitos cinéfilos, militantes e não só, inclusivamente uma parcela dos que se dedicam a actividades como a crítica e a programação de cinema, são aqui e além surpreendidos pela quantidade de filmes e de nomes a eles associados que apenas conhecem de forma parcelar.

Sobretudo, quando falamos de cinematografias que não se inserem na circulação dominante associada aos “produtos” americanos. Nada de grave, que não possa ser remediado com o referido investimento no conhecimento mais fino da matéria em causa. Uma atitude pessoal que pode ganhar outro fôlego, se for apoiada por iniciativas mais amplas como a que aqui destacamos, o ciclo MESTRES JAPONESES DESCONHECIDOS, organizado em boa hora pela Produtora/Distribuidora THE STONE AND THE PLOT, que incide a atenção sobre um conjunto de filmes de 1955 oriundos da NIKKATSU, a mais antiga das produtoras cinematográficas do Japão.

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No final dos anos 40, início dos 50, o Japão começava a recuperar a dinâmica económica e industrial perdida com a capitulação do regime imperial e militarista que o arrastou para um dos conflitos mais devastadores do Século XX, a Segunda Guerra Mundial. Ironicamente, recuperação auxiliada pelo papel que o país foi obrigado a prestar no outro grande conflito que se lhe seguiu, o da Guerra da Coreia. Este período integrou igualmente uma renovação da estrutura industrial dos principais estúdios de cinema situados entre Quioto e Tóquio que, apesar da guerra e da posterior ocupação americana, nunca foram destruídos, intencionalmente, como sucedeu com a grande indústria alemã na Europa.

Entretanto, o povo japonês, mesmo sob a ocupação, nunca deixou de valorizar o seu património histórico, o seu modo de ser e estar nos mais diferentes domínios, nem nunca deixou que o seu cinema fosse contaminado pelos mais básicos valores do american way of life, apesar da influência que este exerceu sobre as novas gerações e até, por vezes com mais entusiasmo, entre os mais velhos que saudaram o advento de um novo regime em democracia, ou seja, muitos daqueles que antes, contra a corrente, não alinharam pela vertigem do fascismo-imperialista nipónico, ao contrário do que muita propaganda fez acreditar. Mas, como se sabe, a primeira vítima das guerras foi e continua a ser a verdade.

Um ciclo para melhor conhecer a alma japonesa.

Na época em que os filmes deste ciclo foram produzidos, meados dos anos 50, não foi o renascimento, mas sim a revitalização e reorganização da produção oriunda de estúdios como a SHOCHIKU, DAIEI, TOHO, SHINTOHO e TOEI, assim como de companhias de distribuição onde encontramos a NIKKATSU, que permitiu, por um lado, a rápida reconstrução da rede de salas de cinema, essas sim destruídas em grande parte durante a guerra e, por outro, o regresso ou a entrada em força de alguns nomes fundamentais como Ozu Yasujiro, Mizoguchi Kenji e Kurosawa Akira, para citar apenas alguns dos mais conhecidos no ocidente, profissionais com maior ou menor experiência que sobreviveram melhor ou pior aos planos ideológicos impostos pelos militares nacionalistas, mantendo com outros cineastas uma relativa independência depois do início da era atómica, até ao fim da presença do SCAP (Supreme Commander for the Allied Powers), designação dada pelo general McArthur ao Comando Supremo das Forças Aliadas, instalado no Japão a partir de 14 de Agosto de 1945. Finalmente, assistiu-se ao reforço e mesmo a uma consolidação de fortes estruturas sindicais que permitiram regularizar as leis laborais, protegendo os seus profissionais de modo a salvaguardar a identidade japonesa numa indústria com uma forte presença no mercado interno, o principal mercado para o qual era e continua a ser dirigida a sua produção. Fundamental, foi igualmente outro factor que facilitou a diversidade na produção de ficção, ou seja, o abrandamento da censura imposta inicialmente pelos americanos, por exemplo, que impunha fortes restrições a filmes que pudessem de algum modo ser um elogio ou uma memória de um Japão feudal, onde os valores prevalecentes não eram vistos como compatíveis com a democratização da futura sociedade japonesa.

Deste modo, podemos dizer que as condições objectivas e subjectivas que então foram conjugadas abriram as portas a um dos momentos de maior representatividade, criatividade e modernidade do cinema japonês, senão mesmo ao período de ouro da indústria cinematográfica nipónica.

Novos filmes de uma velha nova indústria.

Para se perceber a importância do cinema japonês e, de certo modo, a qualidade dos filmes que fazem parte do ciclo, será importante recordar que o Japão produziu só de 1950 até 1955 mais de dois mil filmes, quase o dobro da indústria americana, e que as receitas de bilheteira no mercado interno eram suficientes para recuperar e ultrapassar a globalidade dos investimentos financeiros na sua produção. Estes números eram acompanhados por uma visível qualidade dos valores de produção artísticos patente na maioria das obras, que ainda hoje podemos apontar como um exemplo do melhor que se fez na História do Cinema Mundial.

O Menino da Ama
Título Original: Jochukko. Realização: Tomotaka Tasaka. Argumento: Katsuya Susaki, Tomotaka Tasaka, Baseado no Romance de Shigeko Yuki. Direcção de Fotografia: Saburô Isayama. Música: Akira Ifukube. Direcção de Arte: Takeo Kimura. Produção: Shôzô Ashida. Elenco: Sachiko Hidari, Shûji Sano, Yukiko Todoroki, Chieko Higashiyama, Teruo Inaba, Jô Shishido.
Preto e Branco, 142 minutos. | ©Nikkatsu

E agora, os filmes. Primeiro, O MENINO DA AMA (Jochukko), ou melhor, A CRIADA. Realização de Tomotaka Tasaka. O cinema japonês, identificado com os assuntos de natureza contemporânea, os chamados gendaigeki, apresentou alguns sub-géneros associados ao shomin-geki, filmes sobre gente comum. Depois dos filmes sobre o papel das mães, vieram os relacionados com a vida das amas ou criadas de servir, a maior parte das quais eram retratadas como aquilo que elas eram na realidade, jovens que vinham para a grande cidade procurar aquilo que nas suas aldeias não podiam obter, ou seja, os meios de subsistência que as defendessem dos rigores e das vicissitudes da vida rural. Na prática, procurando contrariar o destino dos seus pais e familiares, a quem auxiliavam economicamente, em busca da oportunidade de uma vida melhor.

Neste filme, a actriz Sachiko Hidari interpreta magistralmente a personagem da jovem que, oriunda do Norte do Japão, vem oferecer os seus serviços a uma família burguesa, perfeitamente integrada na Tóquio do pós-guerra e beneficiando dos favores de um certo renascimento económico. Pouco a pouco, vai criando laços de relativa intimidade com os patrões, sobretudo a mulher do patrão que a vai corrigindo no comportamento e na própria linguagem, seguindo conceitos muito codificados das relações entre as diferentes classes sociais. Na família há dois filhos pequenos, e um deles vai gradualmente aproximar-se desta criada com papel de ama, com algumas contradições pelo meio que revelam os preconceitos e consequências da educação dada aos mais novos no quadro da ideologia dominante. Na verdade, entre a patroa, os membros da família e a criada existe uma diferença no plano da liberdade individual, mas o argumento não deixa passar em claro a exposição da falta de autonomia das mulheres, qualquer que seja a sua condição, apesar dos ventos de democracia apregoados pelo novo poder. Este confronto, surdo mas brutal com hábitos seculares, será compensado pela solidão libertadora da criada, que em vez de recusar a realidade como ela se mostra, irá construir um universo próprio a partir das suas experiências pessoais, numa crescente aproximação ao menino que ela adopta como o filho que nunca o poderia ser. São pequenos gestos, frases, momentos em que o silêncio fala mais alto que qualquer diálogo e que resultam numa cumplicidade latente que irá levar a criança, na ausência da criada, a fugir de casa e apanhar sozinho um comboio para ir ao seu encontro no que ele imagina ser o idílio da vida no campo. Os ecos da vida e das memórias narradas pela ama sobre Akita, região do Japão coberta de neve e onde ainda se cultivam rituais antigos de demónios e noites fantásticas, ritual a que iremos assistir numa das sequências mais estranhas e divertidas do filme. Momentos que contrastam com o dramático final, feito de uma amarga felicidade que não se pode confundir com happy-endings Hollywoodianos, e que apresenta o sacrifício da jovem como a chave para a cabal compreensão da personalidade de uma mulher, agora mais adulta, que escolhe a pureza dos sentimentos e o regresso ao lugar de origem, comprometendo assim um futuro eventualmente mais seguro. O MENINO DA AMA foi considerado, numa lista liderada por UKIGUMO (Nuvens Flutuantes), de Naruse Mikio, o sexto melhor filme japonês de 1955.

Mulheres de Ginza
Título Original: Ginza no onna. Realização: Kôzaburô Yoshimura. Argumento: Kaneto Shindô, Nisan Takahashi. Direcção de Fotografia: Yoshio Miyajima. Música: Akira Ifukube. Direcção de Arte: Takashi Marumo. Produção: Tengo Yamada. Elenco: Nobuko Otowa, Sumiko Hidaka, Yukiko Todoroki, Jô Shishido, Mie Kitahara, Murasaki Fujima. Preto e Branco, 109 minutos | ©Nikkatsu

Segunda proposta, MULHERES DE GINZA (Ginza No Onna). Realização de Kôzaburô Yoshimura. Para melhor percebermos o Japão e afastarmos uma falsa percepção que do país e suas instituições possamos ter, não faz mal nenhum purificarmos alguns conceitos como, por exemplo, o papel da gueixa e a influência que a sua profissão secular possui no contexto particular da sociedade japonesa. Muitas vezes a actividade das gueixas, aos olhos dos estrangeiros, acaba por ser confundida com essa outra profissão, ainda mais antiga, a prostituição. Nada mais falso. Na verdade, as gueixas são mulheres que desde cedo são educadas na arte da música, do canto, da dança e da conversação com um objectivo preciso, o de prestarem os seus serviços mediante um aluguer como hospedeiras, normalmente em casas de chá ou salões de banquetes. Como quaisquer mulheres saudáveis, não são imunes ao desejo, apesar da educação que as leva a reprimir sentimentos dessa natureza. Deste modo, a reserva do relacionamento com alguns homens não as impede de se apaixonarem por quem inicialmente apenas serviam num plano meramente profissional. Precisamente, o argumento de MULHERES DE GINZA aborda essa questão sem rodeios, situando a acção numa residência de gueixas, a Shizumoto, que nos anos 50 começava a sofrer as consequências do cruzamento entre a ocidentalização dos costumes e a prevalência de hierarquias estabelecidas e de hábitos adquiridos com base em códigos ancestrais de separação de castas no interior do próprio grupo, neste caso a patroa, Ikuyo, e as suas empregadas. Mas o filme vai mais longe e coloca o seu ponto de vista dominante nos olhos de uma jovem aprendiz que aqui desempenha um papel que, de certo modo, pode encontrar um elo de ligação com o papel da criada em O MENINO DA AMA. Uma rapariga ingénua que gradualmente vai adquirindo personalidade adulta e responsável face ao frenesim algo pueril das suas companheiras, quase sempre embrulhadas nas vicissitudes quotidianas de um bairro como Ginza, assim como nas frustrações amorosas e na procura desesperada de uma popularidade capaz de devolver o ilusório fulgor de épocas passadas, procura de sobrevivência numa sociedade que já não bebia apenas chá, preferindo
antes as bebidas alcoólicas da moda. Ikuyo, a gueixa mais velha e por isso mesmo a mais vulnerável no seu poder, será protagonista de uma relação com um rapaz, que não será aquilo que se pode considerar uma flor que se cheire, situação difícil de sustentar e por isso mesmo a origem do conflito que vai dar corpo a uma vertigem de destruição, que ao contrário do que se podia imaginar, mesmo na adversidade irá desencadear a capacidade redentora das gueixas, prova de que, apesar da derrota das suas ambições, as mulheres de Ginza acabam por sair mais fortes, sobretudo enquanto mulheres. Um filme lúcido sobre uma profissão e um país que superava a ressaca do pós-guerra com uma força de espírito, simultaneamente, pessoal e colectiva.

Cada Um na Sua Cova Japão
Título Original: Jibun no ana no nakade. Realização: Tomu Uchida. Argumento: Yasutarô Yagi, Baseado no Romance de Tatsuzô Ishikawa. Direcção de Fotografia: Shigeyoshi Mine. Música: Yasushi Akutagawa. Direcção de Arte: Takeo Kimura. Produção: Kaneo Iwai. Elenco: Rentarô Mikuni, Yumeji Tsukioka, Mie Kitahara, Jûkichi Uno, Nobuo Kaneko, Bokuzen Hidari, Tanie Kitabayashi, Hiroko Seki. Preto e Branco, 125 minutos. | ©Nikkatsu

Finalmente, CADA UM NA SUA COVA (Jibun No Ana No Nakade). Realização de Tomu Uchida. O realizador deste filme será provavelmente o mais conhecido dos “desconhecidos” que integram este ciclo. Neste ponto, aproveito aqui para salientar aquilo que me parece fundamental referir a propósito da designação MESTRES JAPONESES DESCONHECIDOS. Em boa verdade, só devemos aceitar este conceito numa apreciação situada de fora para dentro da indústria japonesa, porque no seu interior alguém que realiza filmes que ficam entre os primeiros mais vistos do seu ano de produção não pode de modo algum ser apelidado de desconhecido. No caso de Tomu Uchida, muito menos, mesmo numa perspectiva exterior. Entre outras, em 2016, o MOMA de Nova Iorque apresentou uma grande retrospectiva da sua obra, a que podemos juntar uma outra na BAMcinématek em 2008, e outra no Festival de Roterdão em 2005. E mais podiam ser adicionadas. Mestre desconhecido, ignorado, esquecido? Sim, até certo ponto, numa perspectiva ocidental. Mas, no Japão, garanto por experiência própria que nada disso se passa. Há anos, discuti longamente com colegas do mesmo ofício, eu a falar de Ozu Yasujiro como um Deus e alguns de entre eles a apontar Tomu Uchida, bom, não como o Filho mas como o Espírito Santo. Para os devidos efeitos, ambas as partes ficaram felizes e contentes, e no domínio do “sagrado”.

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Quanto ao filme proposto neste breve ciclo, há que salientar nele uma clara visão crítica da presença americana e, logo ao início, não pode ser mais clara a mensagem contra a permanência das bases militares de onde descolavam os caças que atravessam os céus nos planos iniciais com um som bruto e agressivo, numa sonoplastia que irá por diversas vezes esmagar o fluir da ficção. Com este e outros ruídos, como os da construção civil que arrasa o património histórico-cultural de cidades que nunca mais serão as mesmas, fazendo lembrar ao espectador o mal-estar da sociedade japonesa dividida entre o passado, que não se ousa abertamente louvar, e o presente que se critica numa relativa surdina. De igual modo, vemos a crítica de um país onde a crescente dependência do capitalismo internacional constitui uma outra forma de ocupação, agora através da manipulação económica na Bolsa de Valores. Precisamente, aquilo que vai perder uma das personagens mais frágeis e controversas do filme, Junjiro, um homem doente e viciado no jogo das acções, cuja cobiça irá desencadear um remoinho de conflitos que atinge os restantes membros da família, a saber, a sua irmã, Tamiko, mulher que procura uma independência sistematicamente perturbada pela vontade de a verem casada com quem ela não ama, desejo alimentado nomeadamente por parte da viúva Nobuko, que habita na mesma casa com os dois irmãos, filhos do seu falecido marido. No plano narrativo, o filme não se fica apenas pelas contradições geradas numa sociedade em mutação e numa família em desintegração, investindo igualmente numa crítica muito clara ao que era na altura a condição feminina e a situação das mulheres, relegadas para um segundo plano e, legalmente, pouco protegidas face aos que deveriam ser os seus direitos mais elementares. Diga-se, nada que não sucedesse noutros países. Finalmente, duas outras personagens dão corpo a outra forma de ver o mundo, para o bem e para o mal, a do veterano que decide abandonar a vida laboral para vagabundear pelo Japão em busca de uma redenção espiritual que poucos acompanham. Magnífica a sequência em que ele contempla com um olhar meio agreste, meio nostálgico, uma fábrica desactivada, que fora no período da guerra peça essencial do poder militarista. Noutro ponto do filme, a mulher de Junjiro, de quem estava separada, que ao surgir das sombras do passado corresponde de forma exemplar ao fantasma masculino, no fundo, o medo da mulher independente que, por meios nem sempre ortodoxos, apresenta alguma capacidade de impor a sua vontade de poder. Deste modo, CADA UM NA SUA COVA fica como o filme deste ciclo que mais visceralmente disseca as encruzilhadas colocadas ao Japão, e que nos anos 50 e seguintes não serão mais as dos senhores da guerra, mas as dos conflitos culturais, sociais, políticos e económicos. Resta acrescentar que qualquer dos filmes mostra como a indústria japonesa não descurava os valores de produção, a fotografia e o eficaz jogo de escalas na definição dos enquadramentos, o som e o desenho dos efeitos sonoros, a montagem, a função dramática da música, a direcção artística e, nunca poderemos esquecer, a notável presença dos actores.

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