Spencer, em análise

Depois da estreia no Festival de Veneza, “Spencer”, o novo filme de Pablo Larraín sobre a Princesa Diana, chega agora aos cinemas portugueses. No papel principal, Kristen Stewart tem sido aclamada pela crítica mundial e parece estar na senda do Óscar. Pelo menos, a nomeação afigura-se como quase garantida.

“Uma fábula sobre uma tragédia real” – assim o filme se autodescreve, mesmo antes da voz humana tomar a cena ou de a luz quebrar o vazio do ecrã escuro. São estas as palavras com que Pablo Larraín começa o seu “Spencer” e servem como livro de instruções. São um guia para o espetador entender o que o cineasta chileno e sua equipa estão a fazer neste filme biográfico que vai contra a tradição do filme biográfico. Afinal, muitos houve que descreveram a história da Princesa Diana como um conto-de-fadas antes do matrimónio com o príncipe desencantado ruir, antes do divórcio e da morte inesperada. Há uma qualidade fabulística em como a imprensa representou Diana, até mesmo na forma com que ela perdura na memória coletiva.

Em certa medida, tanta é essa projeção, a fantasia extrapolada da persona pública, que a mulher privada se perdeu. Por um lado, “Spencer” esforça-se para desenterrar o indivíduo humano que existia debaixo desse burburinho, idealismo e cobiça. Por outro lado, o filme é uma admissão da derrota face ao desafio. Nunca conheceremos Diana e não é esta fac-símile limitada que vai mudar essa condição absoluta. Portanto, Larraín não está a trabalhar numa esfera do real. Mas, ao invés de rejeitar o artifício da leitura dos media, o cineasta concretiza um conto baseado nessa falsidade. “Spencer” é, portanto, uma mentira, mas não esconde esse facto. É uma mentira que pode não contar a verdade, mas decerto conta uma verdade.

spencer critica
© Cinemundo

Há muito que Larraín aborda a História de uma forma singular. Existe um gosto pela desconstrução da narrativa histórica no seu trabalho, uma perspetiva que aponta para a reflexão sobre o passado e como este é lembrado. “Toni Manero”, “Post Mortem”, “Não” e “O Clube” examinaram o Chile de Pinochet e a propaganda enquanto máquina que constrói História, enquanto teatro do engano e dos pecados mal-escondidos. “Neruda” levou a um patamar máximo de metatextualidade, propondo um drama biográfico em que um dos protagonistas pode ser somente personagem escrita pelo outro. “Jackie” viu uma tragédia Americana e desmontou seu rescaldo. Foi sobre uma viúva tentando imortalizar a figura do marido com o ritual operático, a imprensa, o poder da celebridade para retorcer os próprios alicerces do que é real e o que é sonho.

“Spencer” vai mais longe, para bem e mal, mergulhando de cabeça no artifício ao invés de comentar de fora sobre a sua construção. Em termos estruturais, a fita é irmã próxima de “Jackie”, mas está mais próxima de “Neruda” em tema. Muito sumariamente, ” Spencer” conta a história imaginada de um Natal infeliz que Diana passou com a família real em Sandringham. Ao longo de três penosos dias de celebração claustrofóbica, a Princesa de Gales decide seguir para a frente com o divórcio e abandona os festejos com os filhos. Pelo meio, há muita repetição, muitos ciclos viciosos e fragmentações alucinatórias. Encurralados na subjetividade angustiada, de Diana, somos puxados para os confins do seu desespero.

Conhecemo-la quando ela está atrasada, como sempre está durante todo o filme. Esta Princesa Diana nunca chega a horas, nunca faz o que os outros querem, mas sente-se agrilhoada a tradições arcaicas mesmo assim. Qual pássaro engaiolado, atira-se contra as grades da prisão e só se magoa no processo. Ela é pessoa difícil de aturar, tão perdida nos confins da depressão que vai sugando a atenção de todos como um buraco negro. É isso e muito mais. Contudo, não é santa nem é ideal. Logo aí temos uma escolha dramática que merece apreço. Por muito que “Spencer” apregoe pela libertação da sua heroína, jamais esconde quão abrasiva essa mulher amada do povo poderia ser. Existe um egocentrismo aterrador em todo o diálogo, uma feiura para sempre interligada com a beleza do ícone, com a legitimidade do seu sofrimento.

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Talvez nenhuma faceta mostre melhor isso que a montagem, cheia de ruturas na ordem de causa-efeito, estilhaçando qualquer visão objetiva dos acontecimentos. Além disso, sentimos os ciclos sem fim da mulher neurótica, quanto a mágoa devém da fricção como uma instituição desumana, mas também da autossabotagem. Dois devaneios pungentes com ideação suicida, mostram-nos violência contra o próprio como forma de ganhar autonomia sobre si mesma. Ela engole pérolas provas do adultério e corta-se com alicates, tudo para fugir à rotina que lhe é imposta. No entanto, nada disso aconteceu, não há consequências. Nunca as há, pois, quaisquer esforços, são suprimidos pelo poder e dever da Coroa. Ou então, são abortados por uma psique que quer a liberdade sem saber como lá chegar – ignorante e incapaz, cosmicamente impotente.

Inebriado pela pena própria, essa Diana e seu filme tombam no melodrama e por ele se deixam levar. Nos limites do camp, “Spencer” encontra a sua maior glória, entendendo a sua Princesa como uma fantasia desfigurada e expondo-a ao mundo como performance perfeitamente imperfeita. Tentando evitar o floreado, o filme é um melodrama sobre uma princesa assumidamente imaginada. É estratégia ousada e vai ofender muitos espetadores, mas abre os horizontes do cinema biográfico e elimina todas as regras da convenção. A certa altura, quase pensamos que Larraín pode ir matar a sua Diana logo ali em Sandringham, tamanho é o revisionismo desenfreado da fita. É como se a paranoia de Diana emanasse do ecrã e nos contagiasse com o sentimento.

Todo o formalismo reforça essa ideia da emoção levada ao extremo. Em muitas formas, “Spencer” é um filme de terror e uma história de fantasmas. A fotografia de Claire Mathon tem o dom de tornar o fausto num pesadelo, subsumindo o castelo autêntico numa abstração nebulosa que faz lembrar “Os Outros” de Amenábar. Não há como escapar a esses quartos opulentos onde a própria decoração de interiores se parece abater sobre o espetador. Também o faz a música de Jonny Greenwood, tão saturada de extravagância barroca que, a certa altura, faz das joias tilintantes um novo instrumento. Trata-se de um estilo explosivo e pesado, que esmaga. Só em momentos fugazes, como um jogo noturno filmado como uma sessão espírita, é que esse peso atenua e tanto nós como Diana podemos respirar.

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© Cinemundo

Esse excesso é alienante, mesmo absurdo, mas ser-se princesa no século XX é, já por si, uma absurdeza. O milagre de “Spencer” vive no equilíbrio incerto de um ridículo que não atenua a dor provocada pela história e seu tenor orgástico. É um filme hostil que nos esmurra com punhos cobertos de diamantes, que nos pisa o peito com sapatos de salto alto e bem aguçado. Também é estranhíssimo, cheio de humor bizarro e tantas discordâncias tonais que servem para nos emaranhar ainda mais na qualidade emocional dessa Princesa Diana nascida nos pesadelos de Larraín. No centro do engenho está Kristen Stewart no papel principal, uma atriz cuja persona desafetada em nada se assemelha à ideia coletiva da Princesa Diana. De facto, o casting é tão mau que é sublime, encontrando o mesmo feitiço de performance desbravada que Natalie Portman já desenvolveu em “Jackie”.

O trabalho de Stewart formula uma espécie de retrato cubista da Princesa Diana Spencer. Estamos sempre cientes do esforço interpretativo, sendo que a imersão do espetador jamais se regista. Ao invés, temos uma pluralidade de perspetivas compressas num só plano dimensional. Existe a Princesa Diana real e fora do alcance do filme, a Princesa Diana que o público viu, existe o conto-de-fadas subvertido de Larraín, existe a atriz – todas elas fragmentos, estilhaços colados num retrato disforme que fascina pela sua distância do natural, do mimético, do virtuosismo tradicional. Haverá quem deteste a performance, haverá quem a ame. Nós por cá contamo-nos entre o campo dos admiradores e aplaudimos Kristen Stewart de pé. Verdade seja dita, aplaudimos toda a loucura de “Spencer”, sua renúncia da catarse e da biografia fácil, sua celebração do bizarro e do grotesco, da emoção descontrolada que eletriza o ecrã e estonteia o espetador.

Spencer, em análise
Spencer

Movie title: Spencer

Date published: 7 de November de 2021

Director(s): Pablo Larraín

Actor(s): Kristen Stewart, Sally Hawkins, Timothy Spall, Sean Harris, Jack Farthing, Freddie Spry, Jack Nielsen, Elizabeth Berrington, Amy Manson, Stella Gonet

Genre: Drama, Biografia, 2021, 111 min

  • Cláudio Alves - 90
  • Manuel São Bento - 60
  • Virgílio Jesus - 90
  • Rui Ribeiro - 85
  • Maggie Silva - 85
  • Rui Ribeiro - 85
83

CONCLUSÃO:

Entre colares de pérolas que são coleiras e fantasmas de rainhas decapitadas, “Spencer” não é um retrato da Princesa Diana tanto quanto é o retrato cubista de uma Diana imaginada pelo público e pelo artista. Na irrealidade do engenho cinematográfico, existem verdades expressas por mentiras, glamour que dói e dor que sabe a júbilo. Deixando-nos numa nota de euforia vácua, o filme despedaça-nos o coração com um sorriso. Afinal, todos sabemos como esta história acabou fora do sonho no grande ecrã.

O MELHOR: Kristen Stewart, os figurinos de Jacqueline Durran, a banda-sonora asfixiante de Jonny Greenwood.

O PIOR: O diálogo chapado nem sempre prima pela elegância, resvalando num superficialismo sério demais para a absurdeza agonizante de “Spencer”. Por outras palavras, o filme precisava quiçá de uma edição mais judiciosa.

CA

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  1. Jaiane 26 de Novembro de 2021

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