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Screenings Funchal | Cláudia Ribeiro em entrevista sobre Entre Leiras

Cláudia Ribeiro esteve na Madeira para apresentar “Entre Leiras” no ciclo Histórias Lusitanas do Screenings Funchal. 

Cláudia Ribeiro foi pela primeira vez à ilha da Madeira para falar com os espectadores sobre o seu documentário “Entre Leiras“. Tudo aconteceu no passado dia 6 de novembro no âmbito dos ciclo de cinema Histórias Lusitanas do projeto independente Screenings Funchal e do qual o seu filme serviu de sessão de abertura.

Depois disso, a jovem cineasta falou com o público e ainda esteve à conversa com a MHD, para dar-nos a conhecer um pouco sobre os bastidores daquela que é a sua primeira longa-metragem. “Entre Leiras” é um dos melhores documentários portugueses dos últimos tempos, que também já havia passado pelo IndieLisboa, e que retrata o ciclo agrícola e os seus responsáveis tal como são. Na obra não há intenção de posicionar o rural no domínio pitoresco. Para Cláudia, o mais importante era mostrar a vida das protagonistas, mulheres reais e agricultoras desde sempre, Ana e Glória Madureira da Rocha. Conhecemos quem são e como desempenham o seu trabalho, num quotidiano não só esquecido mas, infelizmente, alvo de preconceito e estigmas por parte de quem habita nos grandes centros urbanos.

Para Cláudia Ribeiro, esta é “mais uma realidade”, tão válida quanto outras realidades da sociedade portuguesa e que precisava de ganhar espaço no cinema. Percebemos ao longo do filme o quanto vive fascinada por aquele lugar, pelas encostas de uma zona onde natureza e Homem vivem em comunhão.

Cláudia Ribeiro
Cláudia Ribeiro na rodagem de “Entre Leiras” © Screenings Funchal / Uma Pedra no Sapato

Colocando a câmara de filmar ao nível das personagens, conta-nos algo autêntico e puro que traz um sentido especial ao cinema português da atualidade. Nesse sentido, a escolha do seu projeto para abrir o ciclo Histórias Lusitanas dos Screenings Funchal não terá sido feita ao acaso, porque percebemos, em menos de 90 minutos de projeção, que aquela rotina das irmãs Madureira da Rocha cabe num livro etnográfico sobre o interior de Portugal. Apesar de querermos conhecer mais sobre as personagens e a sua vida privada, para Cláudia Ribeiro isso não era importante. O passo dado por uma jovem cineasta que conhece aquele mundo é de, certo modo, aspirar à universalidade daquelas mulheres e daquela experiência. E, como sabemos, nem tudo nas imagens em movimento precisa ser dito.

Segue com a leitura da nossa entrevista à realizadora Cláudia Ribeiro de “Entre Leiras” e caso estejas na Madeira não te esqueças de dar um saltinho aos Screenings Funchal para conhecer mais filmes portugueses e outras obras independentes.

Entre Leiras | Trailer do filme de Cláudia Ribeiro

MHD: Como é que chegaste às irmãs da Madureira da Rocha?

Cláudia Ribeiro: Eu tenho um amigo que possui uma quinta mesmo ao lado da casa da Dona Glória e quando ele fazia anos íamos lá passar uns dias. Certo dia fui meter conversa com as pessoas de daquela zona e fui pedir salsa à Dona Glória. Eu nem precisava de salsa, e ela ainda deu-me outras coisas. Acabei por ficar aproximadamente uma hora a falar com ela.

Depois quando pensei fazer o “Entre Leiras“, quis fazer primeiro com pessoas da minha família, porque venho de famílias de agricultores e queria fazer com eles ou com amigos de família. Só então que percebi que o melhor era fazer com alguém que não me conhecesse, para que não se fizesse sentir tanto a presença da câmara. Lembrei-me da Dona Glória e foi assim. Pedi a casa ao pai do meu amigo, durante 7 a 8 meses. Ainda fiquei um tempo a pensar como chegaria à Dona Glória, como lhe iria dizer que tinha intenção de filmá-la.  Tentei perceber se era melhor chegar sozinha e depois levava o material necessário para as gravações, ou se aparecia com tudo. Foi então que, ao olhar para a encosta e a refletir sobre esta aventura, decidi avançar. Se tivesse sido programado, ela poderia querer vestir-se de modo diferente… Por isso decidi ir com tudo.

entre leiras critica indielisboa
“Entre Leiras” | © IndieLisboa

Cheguei com o tripé, a câmara e o gravador, que eram as únicas coisas que tinha comigo. E perguntei-lhe “lembra-se de mim de há dois anos atrás” e ela “sim, lembrou-me. Costumava vir aqui”. Eu perguntei-lhe se poderia filmá-la e se poderia filmar o ciclo agrícola. Claramente não percebeu muito bem o que isso significava. Talvez tenha pensado que só acompanharia a plantação das batatas e só posteriormente é que percebeu que era o ciclo todo. A partir daí, chegou também a Dona Ana, que trabalhava com a Dona Glória todos os dias. Sempre senti-me fascinada por aquele lugar, agradava-me imenso a sua atmosfera e fui percebendo que há ali muita gente que pratica uma agricultura de subsistência. As irmãs vivem apenas do que cultivam e pouco mais.

MHD: E este filme decorre no âmbito do teu projeto do Mestrado em Antropologia na Universidade Nova de Lisboa?

Cláudia Ribeiro: Sim. Concluí a Licenciatura em Cinema na Universidade da Beira Interior e depois fui tirar o Mestrado em Lisboa. Isso só aconteceu porque sempre achei que faltasse uma vertente humana. Tirei o Mestrado com esse intuito.

MHD: Como foi o teu dia a dia durante os 8 meses em Paredes de Viadores? Chegaste a receber amigos e familiares ou estavas sempre sozinha?

Cláudia Ribeiro: A maior parte do tempo eu estive sozinha. E vivi na casa do meu amigo, que é uma casa para passar férias e para passar os fins-de-semana e lá tem vinha e uma adega. Eu acabei por tomar conta da quinta e eles já não precisavam de alguém que fosse lá especificamente para isso. Tornei-me na ‘caseira’ da quinta. Aquela panorâmica no final do filme foi feita exatamente dessa casa, onde me encontrava. Eu dali conseguia ver a casa da Dona Glória e a casa da Dona Ana e elas viam-me a mim. Só não dormia com elas. Acordava bem cedo e regressava à noite.

Quando precisavam de alguma coisa, eu ia à cidade com elas, ia ao posto médico, etc. A Dona Glória teimava muitas vezes que não queria comer e eu ficava com ela, só para ver se ela comia. Depois de um dia intenso de trabalho ela precisava de se alimentar, muito mais do que um pão ou uma torrada… Eu cheguei a levar várias coisas, como por exemplo, batata doce e que elas nunca tinham provado. Agora até plantam batata doce! Portanto, eu introduzi algumas coisas nas suas vidas que elas não conheciam.

MHD: A tua câmara no filme é sempre colocada no mesmo nível das personagens. Não é colocada num plano superior como um Deus que observa. Era essa a tua intenção?

Cláudia Ribeiro: Muitos dos filmes que existem sobre o mundo rural têm constantemente essa postura. Têm esse olhar de fora, um olhar distante. Até irritam-me pela forma como ridicularizam o mundo rural. É quase sempre de uma forma pitoresca e, na verdade, eu fui fazer este filme num sentido de obrigação. Queria mostrar aquela realidade a partir do meu olhar, da forma de quem a conhece, ou seja, com proximidade. Eu não sou mais do que ninguém, e não quis colocar-me acima daquelas senhoras. E só mais uma vida e foi essa a vida que eu decidi mostrar.

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© IndieLisboa

O meu trabalho não era glorificá-las, mas encontrar uma maneira de, a partir delas, mostrar que existem tantas pessoas que vivem daquela forma e há muita gente que não sabe. Não quer dizer que seja uma má ou uma ótima forma, é somente mais uma.

MHD: A sociedade portuguesa e os jovens tem-se afastado da vida rural. O teu filme pode ser visto como uma chamada de atenção para o facto dos trabalhos agrícolas estarem a ser esquecidos e para a necessidade de nos voltarmos a aproximar da natureza?

Cláudia Ribeiro: Eu não fiz com essa intenção. Não quero que ninguém vá para o campo só porque está na moda. A minha intenção é mostrar que esta realidade existe e infelizmente há muita gente que a desconhece. Há pessoas que pensam que ninguém vive somente da agricultura. Não quero que quem esteja a ver o filme pense ir para o campo. Isso é uma ideia romântica e não o quis evidenciar no “Entre Leiras“.

Esta vida existe e faz parte da nossa identidade. Há muitas outras coisas que a sociedade desconhece, como a vida nos bairros, que também fazem parte da nossa cultura. Eu é que não os conheço. Para o resultado final ser bom é preciso fazê-lo com amor e é preciso tempo para conseguir calçar os sapatos dos outros.

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As protagonistas de “Entre Leiras” © Screenings Funchal

MHD: Houve alguma coisa que encontraste nestas senhoras, que não colocaste no filme e agora queiras partilhar com os nossos leitores e futuros espectadores do “Entre Leiras”?

Cláudia Ribeiro: Aquilo que quero contar às pessoas está no filme. A vida privada delas e outras tantas coisas que encontrei não interessa ao público. O que interessa está lá. Eu não aprofundo a vida delas, embora esteja a acompanhá-las. Não digo onde estão os seus filhos ou onde estão os seus maridos. Há uma série de coisas que ficam sem resposta e ficam no nosso imaginário. Isso foi propositado, afinal elas servem como ponte, são uma representação de outras pessoas que vivem daquela maneira. Caso desse respostas a essas perguntas, estaria a retirar a universalidade da história. Assim, o filme acaba por ter mais leituras.

MHD: O teu documentário foi o primeiro filme do ciclo “Histórias Lusitanas” dos Screenings Funchal. Que as histórias lusitanas precisam ser contadas ou faltam ser contadas pelo cinema português?

Cláudia Ribeiro: Falta sempre alguma coisa, porque cada pessoa tem uma perspetiva diferente. Só por aí, faltam muitos olhares. Quando dizem que existem muitos filmes sobre o rural, eu penso que também existem muitos filmes sobre o amor e não são todos iguais. Se fosse outra pessoa a filmar a Dona Glória e a Dona Ana teríamos outro filme.

Na verdade falta ver cinema e cinema português. Parece existir uma dificuldade das pessoas em olharem-se ao espelho e pensarem sobre as suas próprias vidas. Aquilo que, de alguma forma, as identifica. Normalmente vamos ao cinema para ver um filme de Hollywood e assim conseguimo-nos distrair. Contudo, quando somos confrontados com a nossa realidade, ou com algo que nos pertence, somos levados a pensar.

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© IndieLisboa

Acredito que falte ao espectador comum essa vontade de pensar sobre as suas vivências e penso que talvez seja essa a razão pela qual os espectadores não vêem cinema português. Não sei bem como isso pode ser implementado, mas existem tantas histórias já filmadas, só não há muita gente que as veja.

MHD: Quais os teus próximos projetos?

Cláudia Ribeiro: Neste momento tenho um filme em pré-produção e estou a acabar duas médias metragens, projetos nos quais fui convidada a realizar. Uma será sobre uma aldeia e outra sobre umas imagens, onde acabei por dar uma narrativa. Neste momento estou em Serpa, e talvez saia daqui com alguma coisa. Pela primeira vez vou ver canto alentejano feminino que existe e quase ninguém conhece. Aqui é uma tradição. Vou ver um ensaio e talvez tenha alguma coisa.

MHD: Fazes um road-trip para conhecer as pequenas histórias lusitanas…

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“Entre Leiras” © Screenings Funchal

Cláudia Ribeiro: Mais ou menos (risos). Eu fui convidada para cá vir no mês de novembro e queria saber o que decorria em Serpa durante este período, além da apanha da azeitona. Depois desta entrevista, vou pegar no carro e vou à procura. Vou descobrir os coros de canto alentejano feminino… Obviamente, tenho pouco tempo para explorar esta realidade. Algo que me deixa relativamente desconfortável. Mesmo assim, quem sabe se não regresso a Serpa, da mesma forma que regressei à casa da Dona Glória dois anos depois da nossa primeira conversa. Tudo é possível.

MHD: Já tiveste oportunidade de falar com a Dona Glória e com a Dona Ana depois do lançamento do filme? Elas estão bem?

Cláudia Ribeiro: Sim, eu vou lá com regularidade. Elas estão bem e no mês passado foram ao Porto, para ver o “Entre Leiras” no grande ecrã. Foi a primeira vez delas numa sala de cinema.

Claro que elas foram as primeiras espectadoras a ver o filme, porque aquilo que vemos deram-me autorização para utilizar. Quando o “Entre Leiras” estreou no IndieLisboa convidei-as a ir, mas elas disseram que só queriam ver quando o filme passasse num espaço mais perto. Como passou no Porto e finalmente acompanhei-as à sala, onde foram ver um filme sobre elas próprias. Não imagino a sensação, mas presenciei e foi uma experiência única. Eu falo regularmente com elas. São uma nova família.

Conhece a programação completa dos Screenings Funchal para novembro. Caso ainda não tenhas visto “Entre Leiras” informamos-te que o “Entre Leiras” está disponível na RTP Play. Clica aqui para veres este documentário em tua casa.

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