"Entre Leiras" | © IndieLisboa

IndieLisboa ’20 | Entre Leiras, em análise

A competição de longas-metragens portuguesas do 17º IndieLisboa parece estar dominada por propostas documentais. “Entre Leiras” de Cláudia Ribeiro é um retrato da vida rural, sobre a comunhão com a natureza o lavouro diário de duas irmãs.

Em Passinhos de Cima, algures entre o Douro e Tâmega, vivem duas irmãs, Ana e Maria Rocha. Elas vivem numa comunidade isolada e com poucos habitantes, cerca de trinta indivíduos que, todos as semanas, são visitados pelo merceeiro mais próximo. Sua existência é dedicada à agricultura, ao trabalho na terra que lhes dá sustento e define os ritmos do dia. É uma forma humilde de fazer a vida, mas não por isso menos essencial que o lavouro de outras entidades mais citadinas. Como as próprias irmãs nos lembram, para os outros comerem alguém tem que criar o alimento.

Foi entre estas duas senhoras que a cineasta Cláudia Ribeiro passou sete meses do ano, filmando o quotidiano delas e ganhando-lhes confiança. Desde a preparação da terra para o semear até a glória da colheita, “Entre Leiras” captura esta forma de viver antiga e duradoura. Fá-lo sem grande pretensiosismo, de forma honesta e surpreendentemente cândida. No engenho cinematográfico de Ribeiro, nunca se finge que a câmara é uma mosca na parede. Estamos sempre cientes que o cinema é um convidado meio intrusivo no dia-a-dia de Ana e Maria e daí floresce a intimidade e também muito humor.

entre leiras critica indielisboa
© IndieLisboa

Ainda não passaram dois minutos desde que o filme começa e já as suas protagonistas comentam a presença da câmara e sua operadora. Pouco depois, até a voz de Ribeiro se faz ouvir, definindo o seu projeto mais como uma conversa do que como um retrato distante, um paradigma onde o cineasta e sua audiência estão ao nível das figuras no ecrã e não num patamar superior a olhar para baixo com clínica condescendência. “Entre Leiras” até expõe os segredos das imagens bucólicas, negando algum do romantismo etéreo que os locais verdejantes podiam suscitar.

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A certa altura, um plano de paisagem é orquestrado sem edição ilusória, com o cenário doméstico a ser manipulado para embelezar o enquadramento. Realizadora e suas sujeitas trocam palavras, puxa-se uma cortina e prende-se com uma mola. É o tableau campestre construído sem a pretensão de perfeccionismo. Por muito que possamos querer assumir que o que se vê nestas observações cinematográficas é a vida corriqueira a desenrolar-se normalmente, a presença do equipamento de filmagem é sempre uma perturbação. Quando se admite esse elemento, o documentário torna-se mais genuíno e parece ficar próximo das suas figuras centrais.

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Graças a tal proximidade obtemos momentos como aquele em que as irmãs deixam a realizadora no campo e, quando já lá vão longe, lembram-se de a chamar pois estão a ir para casa, os trabalhos do dia já concluídos. É divertido e casual, como o diálogo entre amigos. Noutro instante brilhante, Ribeiro e seu sujeito mudam de lugar e conversam enquanto a irmã filma e a cineasta cava a terra. Talvez o sujeito do filme nem sejam as irmãs, mas sim a dinâmica que se estabelece entre elas e sua atenta observadora, quiçá entre elas e os espectadores do filme.

Nada disto significa que “Entre Leiras” é um píncaro de modéstia sem poesia audiovisual. Cláudia Ribeiro encontra serenidade na observação documental. Também esmiúça laivos de inesperada beleza no trabalho duro das irmãs. Veja-se, por exemplo, a geometria repetitiva de um campo lavrado ou os raios de sol a iluminar um arco de água quando é tempo da rega. Até podemos dizer que “Entre Leiras” nos diz adeus com uma das suas mais líricas passagens, com a pessoa na paisagem, a trabalhar, e com a serenidade do silêncio. Só ouvimos o hipnótico som de motores à distância e de animais nas proximidades, do vento nas folhas e de vozes longínquas.

Entre Leiras, em análise
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Movie title: Entre Leiras

Date published: 3 de September de 2020

Director(s): Cláudia Ribeiro

Genre: Documentário, 2020, 82 min

  • Cláudio Alves - 70
70

CONCLUSÃO:

“Entre Leiras” é uma boa lembrança do poder do cinema enquanto documentador da realidade marginal. A conversa das irmãs Rocha é casual, sem grande importância aparente, mas a câmara dá-lhe valor. Cláudia Ribeiro assim concede a estas senhoras o pedestal do grande ecrã e torna-as em maravilhosas estrelas por uma hora de filme. Há algo de belo nesse gesto, quando vidas corriqueiras são postas em frente à objetiva e assim celebradas.

O MELHOR: A cena em que o filme confronta o preconceito que há contra pessoas que vivem e trabalham no campo. As irmãs falam, rancorosas, daqueles que julgam que elas não sabem nada por trabalharem a terra. No contexto de um festival lisboeta, esta passagem de “Entre Leiras” ganha especial poder.

O PIOR: A plasticidade da fotografia digital está sempre em fricção com a imagética campestre do filme. É difícil não passar a curta duração de “Entre Leiras” a ponderar como seria esta obra num registo mais granuloso e físico, mais próximo do lirismo rural de Alice Rohrwacher do que do home video.

CA

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