Gilda (Denise Fraga) é uma ex-professora às portas da morte. ©Promenade

Sonhar com Leões, de Paolo Marinou-Blanco, a Crítica | Rir à beira do abismo

“Sonhar com Leões” é uma comédia negra carregada de melancolia e de sátira burocrática, que marca o regresso do realizador greco-português Paolo Marinou-Blanco à longa-metragem, quase vinte anos depois de “Goodbye Irene”. “Sonhar com Leões” estreou como filme de abertura das Tallinn Black Nights Critical Choices Competition e chega este fim-de-semana a dezenas de salas nacionais.

“Sonhar com Leões”, o novo filme de Paolo Marinou-Blanco, é uma obra muito curiosa e de certo modo um pouco contra-corrente, pois apresenta-nos um universo distorcido onde a morte ou o suicídio são tratados como um serviço prestado: pacotes motivacionais, consultores sorridentes e ‘seminários de transição’, que prometem facilitar o fim da vida, sem confusões e encargos. É efectivamente uma proposta bastante ousada e conceptualmente intrigante, no contexto do cinema português, mesmo que nem sempre seja amplamente bem-sucedida e feliz em termos de argumento. Mas pelo menos é arriscada e quer chegar ao grande público. O próprio trailer é tão dinâmico que dá logo vontade de ir ver o filme. Porém, aviso, a acção e o ritmo do filme são mais compassados.

Nossa vida, nossa morte


A história de “Sonhar com Leões” gira à volta de Gilda (a extraordinária actriz brasileira Denise Fraga), uma ex-professora residente em Portugal, com um tumor cerebral avançado, cujas múltiplas tentativas de suicídio falhadas a levam até à estranha Joy Transition International — uma organização privada que, em vez de oferecer consolo, vende soluções finais embrulhadas em jargão empresarial. A seu lado está o jovem Amadeu (João Nunes Monteiro), agente funerário órfão — por causa de uma selfie — e igualmente ‘doente’, com quem Gilda estabelece uma ligação improvável. A dupla, cúmplice no desespero, acaba por encontrar na partilha da dor, um sentido que desafia a lógica da própria missão que os levou a tomarem uma decisão tão radical.

VÊ TRAILER DE “SONHAR COM LEÕES”

As influências de Lanthimos


Embora existam obviamente outras referências cinematográficas, em “Sonhar Com Leões”, as
comparação com o universo de Yorgos Lanthimos é, quase inevitável: há uma artificialidade intencional no discurso das personagens, um cenário distópico mas vagamente reconhecível e uma certa crueldade nas regras do jogo, que fazem lembrar de facto os filmes do realizador grego, que entretanto se tornou num expoente internacional. Contudo, onde Lanthimos mantém o controlo formal e tonal, Marinou-Blanco parece perder-se um bocadinho, entre a sátira e o melodrama, hesitando entre o absurdo e o realismo emocional.

Sonhar com Leões
Os dois protagonistas, Amadeu (João Nunes Monteiro) e Gilda (Denise Fraga). ©Promenade


A tal ‘química’ entre os protagonistas 


Os momentos mais eficazes e identitários de “Sonhar com Leões” surgem justamente quando o realizador se afasta da paródia institucional, para se focar mais na relação sentimental que estabelecem os dois protagonistas, apesar da diferença de idades. Curiosamente Fraga e Monteiro conseguem partilhar uma química delicada, (mais forte dela, do que dele) que transforma um enredo sombrio numa história de conexão humana ou quase numa comédia romântica, mesmo nos últimos momentos da vida; ou melhor na última aventura, rumo à ilha de Maiorca para morrerem juntos ou pelo menos tentar. Marinou-Blanco revela ainda uma profunda sensibilidade na forma como filma estes instantes cruciais: o humor desaparece, dando lugar à vulnerabilidade, que caracteriza por si só a natureza humana e a hesitação de que afinal é muito bom viver.

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Sonhar Com Leões
As executivas da JTI são interpretadas Joana Monteiro e Sandra Faleiro e ainda Alexander Tuji Nam.©Promenade

A mercantilização da morte


Por outro lado, o conceito da Joy Transition International, (liderada por duas luminosas executivas, interpretadas por Joana Ribeiro e Sandra Faleiro) embora provocador, torna-se talvez um pouco repetitivo e convincente, à medida que o enredo avança. No início, até faz sentido, mas depois o estilo motivacional, as máscaras de sorriso e os discursos vazios, que até poderiam funcionar como uma crítica mordaz à medicalização e mercantilização da morte, acabam por tornar-se num longo sketch, num conjunto de situações sem muita graça e em estúpidas brincadeiras recorrentes, infelizmente em muitos lares de idosos. O que poderia ser uma narrativa afiada e mordaz, torna-se algo vago e pouco interessante.

Sonhar com Leões
António Durães e Victória Guerra são pai e filha. ©Promenade


A oportuna questão da eutanásia 


A questão da eutanásia, paira sobre todo o filme, como um pano de fundo urgente e oportuno de discussão. Num contexto em que o tema ganha cada vez mais relevância em Portugal e noutros países europeus, “Sonhar com Leões” acerta pelo menos em colocar o espectador perante dilemas éticos reais, ainda que o faça com uma abordagem pouco subtil, divertida e demasiado ligeira. O humor negro não é novo neste território — basta lembrar por exemplo “Ensina-me a Viver” (Harold and Maud) [1971], de Hal Ashby  ou mesmo “O Sentido da Vida” (1981) dos Monty Python, realizado por Terry Jones — mas Marinou-Blanco tenta reinventá-lo à luz de um novo contexto político e social, mais de acordo com os nossos tempos e com filmes como “O Quarto ao Lado”, de Pedro Almodóvar.

Denise Fraga e João Monteiro
O par de protagonistas viajam numa última aventura até à bela ilha de Maiorca. ©Promenade

Rir é o melhor remédio para a vida 


Sonhar com Leões” é de facto uma obra com muitas imperfeições, mas também louve-se, demasiado corajosa para o momento. Por vezes, é um filme desajeitado na forma como equilibra tom e mensagem, mas tem momentos de ternura e ironia que não deixam de ressoar e tocar os nossos corações. Fica a sensação de que, mais do que rir, o realizador quer fazer-nos pensar, mesmo que, para isso, tenhamos de rir à beira do abismo ou melhor rir da nossa existência. Destaque ainda para três figuras do elenco, que não passam despercebidas: Victoria Guerra (a ‘workout’ filha do patrão da agência funerária), António Durães (o patrão-cangalheiro, obcecado por sexo) e o actor brasileiro Roberto Bomtempo (o marido doente que acaba por abandonar Gilda). Falta talvez ainda em quase todo o filme a presença de uma banda sonora mais envolvente que foi composta por Léo Vintage, à excepção de quando entra oo velho tema ‘Maracangalha’, de Dorival Caymmi: ‘Eu vou pra Maracangalha, eu vou, Eu vou de liforme branco, eu vou, Eu vou de chapéu de palha, eu vou, Eu vou convidar Anália, eu vou’….cantado no desespero de Gilda (Fraga), quando o filme se aproxima do fim.

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Esta tragicomédia surrealista e um pouco transloucada, integra ainda a Cinema em Festa 2025 com bilhetes a preço reduzido nos dias 12, 13 e 14 de maio. Vamos ao cinema!

Sonhar com Leões, de Paolo Marinou-Blanco, a Crítica
  • José Vieira Mendes - 65

Conclusão:

“Sonhar com Leões” é uma obra do cinema português, que arrisca ao cruzar a sátira social com o drama existencial, num tema sensível como a morte assistida. Embora nem todos os seus elementos cómicos atinjam o alvo, o filme de Paolo Marinou-Blanco distingue-se pela ousadia temática, pelo imaginário distópico e pela empatia gerada entre as suas personagens principais. Se por vezes se perde no excesso de simbolismo ou numa crítica algo difusa, recupera força na humanidade dos seus protagonistas e na reflexão que deixa ao espectador sobre o direito a escolher o próprio fim.

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Pros

O melhor: As interpretações de Denise Fraga e João Nunes Monteiro, dão de facto alguma profundidade emocional à narrativa. A abordagem corajosa e provocadora ao tema da eutanásia. A criação de um universo distópico com ecos de Yorgos Lanthimos, mas que consegue aos poucos uma identidade própria.

Cons

O pior: A sátira do instituto Joy Transition International nem sempre é eficaz ou clara na sua crítica. Algumas piadas sobre o suicídio podem parecer desajustadas, ultrapassadas ou até de um pouco mau gosto. O argumento nem sempre equilibra bem o tom entre comédia negra e drama existencial.


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