Enzo interpretado com notável naturalismo por Eloy Pohu ©Quinzena Dos Cineastas

“Enzo” de Robin Campillo é um retrato íntimo e comovente de um jovem inquieto em tempos turbulentos | Diário do Festival de Cannes 2025 (Dia 3)

Enzo, realizado por Robin Campillo a partir de um argumento deixado por Laurent Cantet, marca a abertura da 57.ª edição da Quinzena dos Cineastas do Festival de Cannes 2025. Mais do que uma simples homenagem póstuma, este é um filme que pulsa com vida própria — um retrato sensível da juventude, da procura de identidade e dos laços que se formam nas margens de uma Europa em crise.

Há filmes que chegam carregados de peso emocional mesmo antes de começarem. Enzo é um desses casos. Concebido por Laurent Cantet (1961-2024) e finalizado por Robin Campillo após a morte prematura do primeiro há pouco mais de um ano, o filme transporta consigo a herança de uma colaboração profunda entre dois dos mais relevantes cineastas franceses das últimas décadas. O resultado é um drama sóbrio e intenso, que nos fala do crescimento e das fronteiras invisíveis entre o afeto, o desejo e a pertença.

Enzo
Enzo (Eloy Pohu) e Vlad (Maksym Slivinskyi), uma amizade improvável. ©Quinzena dos Cineastas/Divulgação

Entre cimento e tijolos

A história segue Enzo (interpretado com notável naturalismo por Eloy Pohu), um jovem de 16 anos que, em ruptura com o percurso académico que o pai professor universitário idealizara, opta por um caminho aparentemente mais rude: o de aprendiz de pedreiro. Em La Ciotat, no sul de França, local já filmado por Cantet em O Workshop, o quotidiano operário não se resume a cimento e tijolos — é também um espaço de descoberta íntima, onde se desenha a relação entre Enzo e Vlad (Maksym Slivinskyi), um colega ucraniano em situação precária, cuja presença encarna o peso da guerra e do desamparo migratório.

O peso da guerra da Ucrânia

Campillo filma estes momentos com a contenção habitual, mas também com um olhar profundamente empático. Os silêncios falam tanto quanto os diálogos. Os gestos — breves, hesitantes — expressam aquilo que os protagonistas mal conseguem reconhecer em si mesmos. A tensão homoafetiva é sugerida com subtileza, mais próxima de um Chama-me Pelo Teu Nome do que de qualquer dramatização explícita, e insere-se num contexto social em que o futuro parece uma miragem.

O desejo e os seus limites

Enzo é, nesse sentido, um filme sobre as possibilidades e os seus limites: as que se constroem com as mãos, as que se impõem pelas expectativas familiares e as que se desmoronam diante das realidades políticas. Ao assumir este projeto com tanto respeito e humanidade, Robin Campillo honra o legado de Cantet sem nunca perder a sua própria voz autoral. Há ecos de 120 Batimentos por Minuto na forma como a intimidade é politizada, mas também um recuo estilístico que lembra A Turma — e não por acaso.

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Pierfrancesco Favino e Élodie Bouchez são os pais de Enzo. ©Quinzena dos Cineastas/Divulgação

Uma fuga aos clichés

O elenco secundário, onde se destacam como pais do rapaz estão, Pierfrancesco Favino e Élodie Bouchez, uma dupla de excelentes actores que contribui para ancorar o drama num mundo palpável. No entanto, são os dois protagonistas, praticamente desconhecidos do grande público, que capturam o coração do filme. Pohu e Slivinskyi constroem uma relação que foge aos clichés do filme queer, marcada por uma ternura tímida e uma cumplicidade silenciosa.

Uma carta de despedida

Enzo não é apenas um filme comovente — é uma carta de despedida de um realizador e um gesto de continuidade por parte de outro. É também um retrato pungente da juventude europeia, em busca de espaço e significado num mundo fragmentado. Campillo entrega um filme maduro, delicado e necessário, que merece o lugar de destaque que ocupou na abertura da Quinzena dos Cineastas. Sem dúvida, é uma das primeiras grandes obras cinematográficas de 2025.

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