A Ilha Vermelha, a Crítica | Robin Campillo une a fantasia com a Depressão Neocolonial
Charlie Vauselle, Nadia Tereszkiewicz e Quim Gutiérrez juntam-se ao cineasta Robin Campillo no drama “A Ilha Vermelha”.
No filme, “L’Île Rouge” (A Ilha Vermelha), 2023, de Robin Campillo, o principal da acção desenrola-se em Madagáscar, país insular situado na costa oriental africana constituído pela maior ilha do Oceano Índico, cujo povo resultou da miscigenação entre povos africanos e polinésios. Por mera curiosidade, diga-se que o primeiro europeu que ali aportou foi o português Diogo Dias, corria o ano de 1500. Durante muitos anos, mais precisamente desde 1897, Madagáscar foi absorvida como parte do império colonial francês, e não obstante a independência conquistada em 1960 com a designação de República Malgaxe, os dirigentes da Primeira República não conseguiram afastar a presença e influência da França que ali manteve, como noutras ex-colónias, uma significativa presença, nomeadamente para garantir o seu posicionamento geoestratégico.
Realidade, Fantasia e a Depressão Neocolonial
E será numa base da Força Aérea Francesa que vamos encontrar um grupo diversificado de homens e mulheres oriundos dos quatro cantos da metrópole naquilo que poderíamos apelidar, por comparação irónica com as aventuras de Astérix e Obélix, a versão militarizada da pequena aldeia dos “irredutíveis” gauleses. Todos muito felizes e contentes por ali estarem mais ou menos protegidos e isolados do resto do mundo que os rodeia, sobretudo das contradições políticas e económicas da por eles apelidada “Ilha Vermelha”.
Microcosmos onde os franceses de diversas condições sociais e hierarquias castrenses passavam os dias razoavelmente afastados das populações locais, que apenas empregavam para o serviço doméstico, ou então serviam de repouso do guerreiro no inevitável bordel local. Estamos no início dos anos setenta do século XX. Não obstante os sinais de conforto pequeno-burguês e do aqui e além esforçado equilíbrio familiar, sente-se no ar um certo sentimento depressivo relativo ao falhado projecto de continuidade neocolonial. Muito por causa da agitação nacionalista e revolucionária que se vivia por aquela altura e que deu origem a revoltas com algum significado e que, passo a passo, desencadeou as condições para a instituição em 1975 da Segunda República dominada por uma nova constituição e pelo chamado Estatuto de Revolução Socialista Malgaxe.
Fantômette Contra as Forças do Mal
Do mosaico de europeus ali radicados por questões de “missão civilizacional” destaca-se desde cedo um simpático e introvertido rapazinho, Thomas (Charlie Vauselle). Na provável função de ser a projecção fílmica da pré-adolescência que o realizador viveu em Madagáscar, pressupomos com contornos similares ao que o argumento nos sugere no campo ficcional, Thomas será protagonista de uma generosa sucessão de comportamentos mais ou menos secretos, o que para ele não constitui nada de extraordinário dada a propensão para se esconder e bisbilhotar de perto, mas sempre que possível oculto, a vida dos outros, sobretudo a dos mais velhos.
Em diversas sequências cruza as suas preocupações e fantasmas juvenis com os percursos individuais das restantes personagens, incluindo o da pseudo-namoradinha asiática Suzanne (Cathy Pham), que juntamente com a mãe, a frágil e delicada Colette (Nadia Tereszkiewicz), casada com o macho do pelotão, Robert (Quim Gutiérrez), passa a ser a sua única confidente. Estas crianças, Thomas e Suzanne, partilham um nítido entusiasmo pelas aventuras fantasiosas de uma figura chamada Fantômette, super-heroína que vence os maus porque sim e descobre lá mais para a frente que alguns são afinal os mesmos que se faziam passar por bons.
Lições de vida servidos por episódios rocambolescos que na verdade não adiantam nada ao que podia ser uma abordagem mais directa e acutilante do ser rapaz e rapariga, melhor ainda, do ser diferente num ambiente fechado e dominado pelos preconceitos de poder, raciais e de classe. Mas acredito que Robin Campillo fez questão de se divertir com a produção dos segmentos vagamente oníricos que nos remetem para um passado em que a inocência ainda podia dar cartas, inserções inúteis mas vistosas do ponto de vista cenográfico, circunvoluções mirabolantes da vingadora criatura que actua (lá está de novo a memória irónica da já referida BD criada por Albert Uderzo e René Goscinny) como se estivesse permanentemente sob o efeito de uma poção mágica.
“Ficam deste filme na memória algumas contradições geradas pelo fulgor reprimido”
Nisto gasta o filme a energia que devia reservar para a abordagem adulta dos problemas identitários e de soberania que na prática podiam e deviam contar para a história pessoal dos que viveram a derrocada do sonho neocolonial francês e o dealbar de uma nova era que só nas sequências finais se exibe com os devidos sinais redentores. Mas, infelizmente não chega no momento certo! Tarde demais, meu caro Robin.
De qualquer modo, ficam deste filme na memória algumas contradições geradas pelo fulgor reprimido de uma disponibilidade sexual num contexto de caserna onde a pressão do quotidiano e das regras de disciplina subjacentes faz sentir com mais intensidade os limites impostos aos relacionamentos do grupo de franceses que ali vive de algum modo o reverso da rotineira e hipócrita vida civil.
A Ilha Vermelha, a Crítica
Movie title: L'île rouge
Movie description: No início dos anos 70, em Madagáscar, militares e as suas famílias vivem numa das últimas bases militares francesas, uma relíquia do fim do império colonial francês. Influenciado pela leitura das aventuras da intrépida heroína Fantômette, Thomas, um menino de dez anos, varre com o seu olhar curioso tudo o que o rodeia. Sob a vida despreocupada de expatriado, os seus olhos começam a ver aos poucos uma outra realidade.
Director(s): Robin Campillo
Actor(s): Nadia Tereszkiewicz, Quim Gutierrez , Charlie Vauselle, Amely Rakotoarimalala, Hugues Delamarlière, Sophie Guillemin, David Serero
Genre: Drama, 2023, 117min
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João Garção Borges - 45
Conclusão:
PRÓS: Destacaria a Direcção de Fotografia de Jeanne Lapoirie.
CONTRA: Podia ser um grande filme. As grandes linhas de força estavam lá, mas o realizador preferiu o lado mais fácil e narcisista, ou seja, a abordagem pessoal das suas memórias de juventude numa personagem e num projecto de ficção situado no princípio da sua adolescência e o fim da ilusão neocolonial, dispersando e desbaratando a inserção dos potenciais conflitos dramáticos para os quais não encontrou a pulsão vital do devir colectivo.