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Comandante, a Crítica | Pierfrancesco Favino protagoniza o novo drama de Edoardo De Angelis

A Segunda Guerra Mundial é o pano de fundo de “Comandante”, o novo filme de Edoardo De Angelis com Pierfrancesco Favino no papel principal.

Nos primeiros minutos de “Comandante”, 2023, o realizador e argumentista Edoardo De Angelis (coadjuvado na escrita por Sandro Veronesi) aproveita para nos fazer o retrato psicológico, social e familiar do protagonista, Salvatore Todaro (Pierfrancesco Favino), oficial da Real Marinha de Guerra Italiana e comandante de um submarino baptizado “Comandante Capellini”. Dito isto, “comandantes” não faltam a este filme de guerra, quer por parte da simbologia histórica quer por parte da materialidade conflituosa da acção, para os devidos efeitos a que se desenrolava no início dos anos quarenta do século XX na chamada Batalha do Atlântico Norte.

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Na verdade, viviam-se os primeiros dias de brasa da Segunda Guerra Mundial (Setembro e Outubro de 1940) e os acontecimentos que iremos presenciar estavam enquadrados no esforço e nos desígnios bélicos de uma Itália sob a liderança do ditador fascista Benito Mussolini. Num contexto de alianças onde prevaleciam os interesses particulares dos diferentes povos e nações, Benito Mussolini decidiu entrar no conflito ao lado das forças do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) e, acto contínuo, declarou guerra ao Reino Unido e à França (10 de Junho de 1940). Deste modo, a mobilização realizada no país para cumprir determinadas missões podia muito bem ser encarada, naquele preciso momento, como fruto de uma normalíssima conjuntura onde a disciplina militar imperava sobre as motivações ideológicas, fossem as de quem fosse.

De Que Lado Estás, Marinheiro?

Não importava se o recrutamento incidia sobre um simples marujo ou sobre um sofisticado marinheiro com o posto de comandante. Na prática eram italianos, os futuros representantes da “italiani, brava gente”, conceito muitas vezes associado ao mito que se quis fazer passar no pós-guerra do “bom italiano” que de algum modo não se podia nem devia comparar com outros militares que na retaguarda ou na frente de combate haviam cometido crimes de monta, nomeadamente os soldados nazis ou os militaristas e imperialistas japoneses.

Comandante Pierfrancesco Favino
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Não sejamos ingénuos, este filme não fica imune a esta “generosa” ideia, erguida num exercício de má-consciência, e “Comandante” nem sequer figura como um dos primeiros exemplos cinematográficos ou literários a ser contaminado por esta visão da suposta e singular personalidade do combatente italiano. Veja-se o caso de “Mediterraneo” (Mediterrâneo), 1991, de Gabriele Salvatores, ou de “Captain Corelli’s Mandolin”(O Capitão Corelli), 2001, de John Madden, baseado no romance de Louis de Bernières, só para citar duas obras que não passaram despercebidas e que, não sendo grandes filmes, receberam alguma aceitação popular. No quadro dos melhores exemplos, há uma co-produção entre a União Soviética e a Itália que dá corpo e alma ao referido conceito mas para lhe dar a volta, obra que merece bem ser vista e discutida, intitulada “Italiani, Brava Gente”, 1964, de Giuseppe de Santis.


Mas mergulhemos então literalmente nas águas geladas do oceano, passado o Estreito de Gibraltar e a sua barragem de minas instaladas pelos Aliados, que separava e dificultava a entrada no Atlântico a partir do Mar Mediterrâneo, o Mare Nostrum do Império Romano, o Nosso Mar, conceito que fora reanimado e de novo adoptado pelo poder fascista italiano. Naquele patamar do conflito ainda se viam navegar muitos navios com bandeiras de países neutrais, por vezes sob a capa de uma falsa neutralidade. No filme, o principal conflito dramático irá surgir de forma embrionária quando um navio belga, o “Kabalo”, oriundo de um país que mantinha uma posição neutral mas que navegava ao serviço dos britânicos carregado com equipamento militar, vai ao fundo após ser alvo de uma rápida escaramuça, breve mas suficiente para o submarino comandado por Salvatore Todaro o neutralizar e destruir.

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Do ponto de vista da reconstituição histórica do ataque e contra-ataque, podemos dizer que “Comandante” cumpre os seus objectivos, ou seja, dá-nos a ver com o realismo possível e sem grande aparato hollywoodesco o que realmente se podia observar numa situação similar. Recordemos que o argumento se baseia em acontecimentos reais. Todavia, esta economia narrativa não abandona a sua eficácia nos pressupostos da acção e emoção que estão associados aos acontecimentos posteriores. A saber, o resgate dos vinte seis náufragos belgas e consequentes dilemas de sobrevivência que surgem de parte a parte e que consolidam aquilo que atrás fora o lado embrionário do conflito entre inimigos e agora se manifesta no seu fulgor maior, o ser ou não ser de uma muito delicada questão: salvar ou não salvar marinheiros que se encontram do outro lado da barricada.

Em Rota de Colisão Com as Leis da Guerra…!

Tratava-se de facto de um caso de vida ou de morte para ambos os lados, dada a impossibilidade de o submarino aguentar a pressão humana num espaço apertado, sempre exíguo mesmo para os que nele se enquadravam e eram obrigados a conviver em cima uns dos outros na procura do seu espaço vital. Estamos aqui perante um problema material a que se associava um outro maior, o peso da consciência, sentimento que inevitavelmente se cruzava com questões ainda mais complexas do foro político-militar e com os meandros mais difíceis de lidar, encarar ou interpretar das muito subvertidas leis da guerra. Regulamentos e disposições que Salvatore Todaro irá procurar ultrapassar fazendo prevalecer a sua personalidade de homem do mar, a do marinheiro e não a do militar fascista, percepção que alguns dos náufragos resgatados irão no entanto manter como padrão de rejeição daquele que no fundo os socorrera, chegando mesmo ao ponto de uns poucos procurarem sabotar o submarino.

Comandante Pierfrancesco Favino
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Dessa hipotética missão fanática e algo suicida, porque muito provavelmente a dupla de belgas de cariz mais militante seria igualmente vítima da planeada sabotagem, resultará uma das sequências mais significativas do ponto de vista ideológico, momento fulcral em que o comandante usa de forma muito concreta o seu poder. Não apenas para castigar com alguma violência quem o insultara e de certo modo o humilhara, mas também para consolidar o rumo moral que decidira para si como conduta de relacionamento com os prisioneiros de guerra. Numa primeira fase, víramos um navio belga que se dirigia para a Ilha da Madeira ser por ele empurrado para o fundo do mar e, agora, no pleno comando do seu submarino, o comandante Salvatore Todaro, num acto de coragem que lhe podia custar a carreira, decidira rumar para a Ilha de Santa Maria, porto de abrigo mais próximo situado nos Açores.

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Nessa rota, procura navegar sem submergir de modo a poupar vidas humanas, ou seja, não afogar os marinheiros que se encontravam no casco exterior, aqueles que não puderam ser acolhidos no interior do submarino. Curiosamente, os destinos previstos ou determinados pelas circunstâncias para o navio mercante “Kabalo” e para o submarino “Comandante Capellini”, dão-nos conta de duas referências históricas, neste caso geográficas, onde sobressaem portos de um país neutral, Portugal. Na verdade, o jogo duplo e sibilino do ditador Oliveira Salazar e do seu regime fascista foi muito útil ao contexto de ambiguidade que servia tanto os interesses das forças Aliadas como as do Eixo.

Comandante Pierfrancesco Favino
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Em suma, “Comandante” mostra como se pode encenar no quadro da marinha de guerra essa ambiguidade no comportamento dos que directa ou indirectamente apoiavam o fascismo italiano e fazer dela uma carta de um naipe vencedor. Mesmo quando se pressente desde cedo que a nova missão assumida pelo comandante em rota de colisão com as ordens recebidas na origem, e para usar uma metáfora “marítima”, não iria passar de uma gota de água num vasto oceano de conflitualidades, um episódio entre mil que ficaria mais ou menos esquecido nas brumas da memória, não fosse a vontade de desenterrar hoje e bem para a ficção um ou outro dos actos improváveis de heroísmo e determinação que fizeram a diferença entre civilização e barbárie num clima geral de carnificina.

Comandante, a Crítica
Comandante Poster Pierfrancesco Favino

Movie title: Comandante

Movie description: No início da 2ª Guerra Mundial, Salvatore Todaro é o comandante terrible do submarino Cappellini da Real Marinha Italiana. Em Outubro de 1940, em pleno oceano Atlântico, avistam a silhueta de um navio mercante com as luzes desligadas em pleno breu. Kabalo, um navio belga que carregava armamento britânico, depressa ataca os italianos, mas este breve confronto termina com um tiro de canhão que afunda os belgas. Depois do sucedido, Todaro toma uma decisão que faria história: resgatar os 26 sobreviventes belgas e desembarcá-los no porto mais próximo, como requerido pela lei marítima, mesmo que isso significasse colocar toda a sua tripulação e missão em risco. Mas será que conseguirá cumprir a missão a que se propôs, quando as pressões internas colocam em risca a segurança de todos?

Director(s): Edoardo De Angelis

Actor(s): Pierfrancesco Favino, Johan Heldenbergh, Massimiliano Rossi

Genre: Drama, 2023, 120min

  • João Garção Borges - 65
65

Conclusão:

PRÓS: Foi o filme de abertura do Festival de Veneza de 2023, onde acabou por substituir o inicialmente previsto “Challengers”, 2024, de Luca Guadagnino. Levou a melhor a produção italiana, numa altura em que ainda estava em curso nos EUA a greve promovida pelo SAG-AFTRA.

Dos seus valores de produção salienta-se a Direcção de Fotografia (responsabilidade de Ferran Paredes Rubio) que se destaca sobretudo nas diversas sequências nocturnas e, naturalmente, no “ventre prenho de homens” do submarino.

No campo da Direcção Artística, a reconstituição da vida num interior confinado não fica atrás de outros projectos passados, sendo mesmo em alguns aspectos mais realista. Uma opção que se revela corajosa, já que nem sempre a máxima verdade do décor corresponde ao máximo de articulação emocional. Mas, neste caso, nada a censurar, e a opção pelo real funciona.

Funciona igualmente a caracterização geral daqueles marinheiros que na maior parte das vezes andam vestidos de forma sumária, nada a ver com algumas ficções rodadas em ambientes claustrofóbicos em que mesmo nas condições mais precárias os militares se mostram bastante mais disciplinados. Enfim, só quem nunca andou num submarino pode achar estranha a indumentária ou a falta dela, assim como o suor que invade o rosto das personagens, a rudeza da linguagem ou a parca e rotineira ração com que mal se alimentam.

De facto, há muitos pormenores que vale a pena saborear ao longo do filme, que se vê sem grandes resistências, mesmo quando sentimos que por detrás da composição da identidade moral do comandante existe um pressuposto de pequena mas não obstante visível demagogia nacionalista. Não compromete o essencial, mas que está lá, está!

CONTRA: Nada de muito importante a assinalar.

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