O jovem inspector Izidine (Horácio Guiamba) chega à Ilha de Moçambique. ©Real Ficção

O Ancoradouro do Tempo – Análise

Em “O Ancoradouro do Tempo”, o realizador Sol de Carvalho (“Mabata Bata”) adapta “A Varanda do Frangipani” com alma, humor, poesia e um toque de febre tropical. Um filme luso-moçambicano com sabor a conto oral, crime sem pressa e amor em surdina.

Se há filmes que se medem em explosões por minuto, “O Ancoradouro do Tempo”, pelo contrário joga noutra liga: a das palavras que flutuam devagarinho, como um barco ao largo da bela, mas decadente Ilha de Moçambique, embalado por histórias contadas ao luar.

Sol de Carvalho, o veterano realizador moçambicano, volta a navegar pelo universo literário de Mia Couto e entrega-nos uma adaptação que é, acima de tudo, uma ode à lentidão do tempo, à memória dos mortos e à teimosia dos vivos.

O Ancoradouro do Tempo
“O Ancoradouro do Tempo” transforma-se num pretexto para revisitar o passado.©Real Ficção

Uma varanda para Moçambique

Baseado no romance “A Varanda do Frangipani”, publicado em 1996, “O Ancoradouro do Tempo”, de Sol de Carvalho — que depois de “Mabata Bata”, também baseado no conto do escritor seu conterrâneo —  começa como um policial e transforma-se, lentamente — muito lentamente — numa espécie de serenata fúnebre em forma de narrativa circular.

O jovem inspector Izidine (Horácio Guiamba) chega a uma fortaleza transformada em asilo para investigar o homicídio de Vasto Excelêncio (Tomás Bié), o director do lar. Mas em vez de pistas, encontra confissões em excesso: todos os velhinhos dizem que foram eles os culpados. E dizem-no com tanto detalhe e convicção que até um CSI em burnout desistiria da investigação e pediria transferência para um canal de culinária.

Realismo fantástico africano

Aos poucos, a investigação de “O Ancoradouro do Tempo” transforma-se num pretexto para revisitar vidas passadas e histórias semi-fantásticas, contadas olho no olho, com a câmara a quebrar a quarta parede como quem nos sussurra um segredo. O filme mistura planos contemplativos, monólogos directos e flashbacks cheios de lirismo tropical, com diálogos que parecem retirados de uma fábula africana e provavelmente foram. Afinal, estamos a falar de Mia Couto, senhor de palavras que brotam com raízes.

O que funciona (e muito bem)

A Ilha de Moçambique, onde “O Ancoradouro do Tempo” foi rodado, é mais do que cenário: é pode-se dizer a personagem principal do filme. A fortaleza, as ruínas, o mar e os ventos parecem estar em conluio com o enredo, conspirando para que tudo aconteça ao ritmo dos ciclos da natureza. A fotografia é belíssima, com enquadramentos que parecem telas pintadas com salitre e sombra. E há algo de profundamente cinematográfico na forma como a tradição oral se cola à narrativa fílmica. E aqui, as palavras não explicam: encantam.

O ANCORADOURO DO TEMPO
O elenco é composto integralmente por actores moçambicanos.  ©Real Ficção

Música no coração dos actores

O elenco de “O Ancoradouro do Tempo”, composto integralmente por actores moçambicanos, revela-se à altura da tarefa. Destaque para Josefina Massango (Nãozinha) e Adelino Branquinho (Navaia), que carregam nos olhos décadas de história. Mas o grande trunfo é mesmo o modo como todos os actores mostram disciplina, entrega e — diz o realizador — mais profissionalismo do que viu em 40 anos de carreira.

Até Stewart Sukuma trocou a música pela representação e, pasme-se, sai-se bem. A direcção musical (do próprio Sukuma) acrescenta ao filme uma camada sensorial que reforça o tom de encantamento ou seja um jazz morno com sotaque africano que nos embala entre confissões e memórias.

O Ancoradouro do Tempo
“O Ancoradouro do Tempo”há uma fidelidade à linguagem literária. ©Real Ficção

O que tropeça (mas com estilo)

Há momentos de “O Ancoradouro do Tempo” em que a fidelidade à linguagem literária quase afoga o filme em metáforas. É um cinema mais preocupado em ser mais poético do que em ser ágil. Quem espera grandes reviravoltas ou clímaxes vai sentir que está a ver uma peça de teatro contada por um avô sonhador depois de duas chávenas de chá de hibisco ou uma ‘ganza’.

Há também um certo desequilíbrio de ritmo entre as confissões e a linha narrativa principal, o que faz com que os 115 minutos pareçam, por vezes, mais horas, mas enfim é um filme que se vê muito bem, com um toque de nostalgia e contemplação. E convenhamos: o policial é mais decorativo do que funcional.

A intriga do ‘quem matou Excelêncio?’ é rapidamente engolida por outras perguntas mais existenciais e complexas, como ‘para que serve um lar de velhos onde ninguém quer viver, mas ninguém quer sair?’ ou ‘o que resta de nós quando o tempo se esquece que estamos vivos?’. “O Ancoradouro do Tempo” é uma pequena pérola do cinema africano de expressão portuguesa!

JVM

“O Ancoradouro do Tempo” — Análise | Mia Couto no ecrã e a arte de contar histórias como se o tempo não existisse
  • José Vieira Mendes - 60

Conclusão:

“O Ancoradouro do Tempo” é uma fábula criminal travestida de cinema contemplativo, onde a justiça se confunde com poesia e o tempo não é cronológico torna-se emocional. É uma obra bela, melancólica e cheia de alma. Não é para todos, mas é para quem gosta de cinema com cheiro a terra molhada, a palavra contada e a cicatriz antiga. Sol de Carvalho não quis apenas adaptar Mia Couto,  quis dialogar com ele, e essa conversa sente-se em cada plano. Pode não ser o filme mais “eficiente” do ano, mas é certamente um dos mais singulares do cinema de expressão portuguesa. E isso, nos tempos que correm, já é um acto de resistência.

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Pros

O melhor: A beleza visual e sonora da Ilha de Moçambique, apesar da decadência. O elenco moçambicano e o registo intimista das confissões. A simbiose entre literatura e cinema, sem medo de sonhar, sem concessões.

Cons

O pior: Ritmo desigual e alguma redundância narrativa. O policial serve mais de pretexto do que de trama. Pode deixar os espectadores mais impacientes a bocejar entre tantas metáforas.



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