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Nayola, em análise

Depois de integrar a competição oficial na Monstra 2023, “Nayola” está em destaque nos cinemas nacionais!

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Baseado na peça “A Caixa Preta”, escrita a quatro mãos pelo angolano José Eduardo Agualusa e pelo moçambicano Mia Couto, o argumento de NAYOLA, 2022, primeira longa-metragem de um grande autor da animação nacional e internacional, o cineasta José Miguel Ribeiro, contou com Virgílio Almeida para consubstanciar no guião as linhas mestras estruturadas a partir da referida matriz atribuindo-lhe a dimensão e o fôlego de uma obra cujo poder de sedução reside na suprema mestria com que se produziu, realizou e enquadrou a vida passada e presente de um grupo de mulheres: a saber, a história da avó Lelena, a história da sua filha Nayola e a história da sua neta Yara, qualquer uma peça fulcral de um mosaico humano representativo de diferentes contextos históricos subjacentes ao arco de circunvoluções e contradições geradas por sucessivas guerras. Três mulheres relacionadas entre si por laços familiares, mas cuja acção do ponto de vista individual viveu e ainda vive condicionada por conflitos que de forma directa ou indirecta as afectaram, assim como por comportamentos que se inseriram e se inserem nos parâmetros sociais e culturais que identificam a cronologia dos mais recentes períodos da História político e militar de Angola: o da guerra colonial em que a mais velha, Lelena, perdeu o marido num combate contra um inimigo comum e bem identificado, o da guerra civil em que Nayola se envolve, aparentemente sem grande convicção, na sua desesperada e corajosa procura do marido desaparecido num combate fratricida em que o inimigo podia ser o irmão, o familiar ou o amigo de outrora, e o do pós-guerra em que a jovem e rebelde Yara procura uma identidade própria enquanto rapper na luta contra o status quo que nas suas canções proibidas acusa de ser um poder imposto sobre o povo, um poder que afirma ser contrário ao livre exercício da cidadania e que não hesita em usar a polícia como meio para atingir os seus alegados objectivos. Deste modo iremos assistir desde o início de NAYOLA a um vai e vem constante entre o ano de 1995 e o de 2011.

TRÊS MULHERES, OS FANTASMAS DO PASSADO E AS MÁSCARAS DO FUTURO

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Desde a primeira e fulgurante sequência inicial, as cores quentes e saturadas da paisagem africana são combinadas com os afloramentos de pó e sombras que enegrecem as ruínas de uma nação junto com o sangue derramado pela brutal violência da guerra. Não podia ser mais claro o propósito da realização ao propor-nos desde muito cedo uma cumplicidade activa com a belíssima representação gráfica e plástica dos ambientes e atmosferas de uma Angola estilizada, numa obra que de forma natural quer seduzir o espectador, mas nunca iludindo a gravidade dos assuntos que nela se expõem, quer na apresentação dos factos quer na maior ou menor intensidade dramática dos mesmos. Poesia, sim, mas sem rodriguinhos decorativos. Deslumbramento pelo belo que nos agarra os sentidos perante a qualidade do universo gráfico e a riqueza plástica de autênticas pinturas em movimento, sem dúvida, mas sem que isso signifique sacrificar as potencialidades da ficção ao plano redutor da arte pela arte. De facto, NAYOLA mostra-se aos nossos olhos como um grito contra os conflitos pessoais e colectivos que lançam homens e mulheres uns contra os outros, por vezes com base em pressupostos que nem sequer dominam e que, numa situação limite, podem dar lugar a discussões abstrusas como as que se arrastam numa sequência particularmente forte do filme em que, perante o espectro da morte iminente, se estabelece um diálogo de surdos entre dois familiares sobre o lugar que cada um ocupa no seio de uma guerra civil. Uma conversa fiada e quase divertida sobre o “lugar errado”, não fosse as circunstâncias em que ocorre, neste caso, a pior das situações porque um deles está preso a uma árvore e o outro está ali no papel de guarda ao serviço dos potenciais carrascos. Diga-se que o “lugar errado” neste filme não é uma figura de mera retórica. Na verdade, os lugares que muitos ocupam parecem não ser nem os lugares certos nem os errados. Mesmo o percurso de Nayola, a personagem sobre quem recai a responsabilidade ficcional de estabelecer a ponte entre o passado e o presente (no pretérito de cara destapada durante a sua perigosa passagem pelo limbo de 1995 e da guerra civil, e no ano de 2011 de cara coberta por uma máscara quando invade a realidade quotidiana da casa materna), faz-se com a noção de que há sempre algo de errado na sua demanda física por Ekumbi, o nome do marido. Esta peregrinação só ganha com a percepção do lado espiritual da sua viagem que a certa altura a vai introduzir numa realidade, digamos, alternativa. Mas o seu lugar a uma mesa onde a mãe, e avó da filha, a confunde com um gatuno, parece já não ser o lado errado mas apenas o lado oculto e certo no momento errado, o que faz uma certa diferença, como saberemos no final que aqui me abstenho de contar por razões óbvias. Na prática, o fim da linha de uma vida recheada de obstáculos. Na verdade, no seu percurso assombrado por dúvidas e sombras, Nayola só possuía uma fotografia do marido, e essa frágil referência não lhe permitiu obter qualquer informação segura junto dos que com ele eventualmente privaram, na realidade sem saberem o seu verdadeiro nome mas apenas o chamado nome de guerra. Ela não sabe, mas sabemos nós, que o mais certo foi ele ser protagonista de um extraordinário episódio que nos minutos iniciais de NAYOLA se descreve num esplendor de realismo e fantasia.

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Nayola
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Um homem negro corre pela floresta, parece livre na sua primitiva nudez, mas não, de repente ouvem-se disparos e os silvos das balas. Poucos metros adiante cai ferido na lama onde se afunda lentamente. Depois, no ponto em que foi engolido pela massa movediça e cinzenta, nasce uma árvore, uma mulemba, que cresce e estende os seus ramos rumo ao céu onde irradia uma luz azul-cobalto que ilumina os verdes, amarelos e vermelhos da luxuriante paisagem. Dito isto, porque passamos a saber mais do que a protagonista, sabemos igualmente que Nayola será obrigada mais para a frente a confrontar o seu destino com o vazio que passo a passo se abre diante de si. Não vai encontrar o homem que amava, mas vai encontrar o seu lugar num mundo destroçado pelas bombas e pela barbárie, onde só acaba por sobreviver graças a uma intervenção da Natureza e de um resgate vital protagonizado por um bicho do mato, um insinuante chacal, que vai mesmo ao ponto de “corporizar” a sua condição felina no ser humano e mulher que passa a vigiar e proteger. Será esta passagem pelos meandros do sobrenatural que mais justifica e consolida na nossa memória o justo valor real, não apenas simbólico, da componente surreal e animista de uma boa parte das sequências oníricas de NAYOLA. Mais do que sonhos, José Miguel Ribeiro quis introduzir na narrativa o poder sedutor e quase mágico das imagens e sons de uma conjuntura cultural que combina as velhas narrativas do folclore africano, mitologias antigas que perduram junto com sons e ritmos que ecoam perenes na vastidão das paisagens, com a iconografia própria da África negra, incluindo o da arte rupestre que na figuração antropomórfica inscrita nas paredes e cavernas muito se aproxima do estilo visual usado pelo realizador na definição de algumas das suas personagens inseridas num outro universo fílmico. Estamos a falar das figuras próximas ou parentes das concebidas com sensibilidade e precisão linear para uma obra anterior, onde se podem constatar prévios pontos de contacto com NAYOLA, as que se observam no admirável exercício de animação da curta-metragem VIAGEM A CABO-VERDE, 2010.

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Muito mais podia dizer, mas penso que seria imperdoável se não desse a palavra ao José Miguel Ribeiro. Daqui para a frente, aqui fica a reprodução das motivações que o levaram a dirigir esta obra maior do cinema de animação, uma co-produção entre a Praça Filmes (Portugal), a S.O.I.L. (Bélgica), a JPL FILMS (França) e IL LUSTER (Países Baixos): “Em 2013, quando li a peça de Eduardo Agualusa e Mia Couto, “A Caixa Preta”, fiquei sensibilizado com a forma como mostrava o impacto de uma guerra recente numa família, na perspectiva de três gerações diferentes de mulheres, com os seus segredos, os seus medos e os seus sonhos, e com a forma como a tensão é construída até à revelação final, com uma personagem por detrás de uma máscara que não pode tocar o presente. Mas porque a guerra era apenas uma memória distante na peça, Virgílio Almeida criou a viagem de Nayola em vários cenários da guerra até ao deserto de Namibe, o que acaba por completar a história e expandir a dimensão poética e mágica do filme. Levou-nos cinco anos e duas viagens a Angola para fazer uma longa pesquisa da História e cultura deste país, sempre que possível a partir de um ponto de vista feminino, como acontece no livro “Combater Duas Vezes”, da angolana Margarida Paredes, com testemunhos de mulheres que lutaram na guerra colonial e civil. Para os efeitos visuais fomos influenciados pelas máscaras africanas e pela arte contemporânea de autores africanos que nos inspiraram na criação das personagens e dos cenários com cores fortes e pinceladas texturadas. A música angolana é fundamental no filme para colocar-nos nesse período temporal, com a arte de músicos como David Zé, Mário Rui Silva e o célebre Bonga. Em 2015, Luaty Beirão, um rapper angolano, foi condenado por um tribunal de Luanda, juntamente com outros 16 activistas, a penas de prisão entre dois e oito anos, por planear uma revolta contra o presidente José Eduardo dos Santos. Influenciado por esse acontecimento, senti que o nosso filme precisava de integrar essa realidade e que a filha de Nayola, Yara, poderia ser uma rapper exigindo justiça social. Uma nova geração que luta com música. Descobri a Medusa num vídeo no Youtube. Medusa tinha a energia, a coragem e a fragilidade de que precisávamos para construir a personagem Yara. Foi então que percebi a urgência em encontrar os outros actores principais. Seis meses depois, em Junho de 2019, estávamos em Angola a trabalhar com eles, a sentir o seu ritmo, a conhecer as suas histórias, a sua forma de falar, as suas línguas ancestrais, e a deixar que toda esta verdade entrasse no filme. Este importante momento mudou profundamente a primeira versão do animatic e deu origem à criação de uma segunda versão mais autêntica e criativa. Finalmente, em 2020, estávamos prontos para começar a produção”.




Nayola, em análise
Nayola

Movie title: Nayola

Date published: 11 de April de 2023

Director(s): José Miguel Ribeiro

Actor(s): Feliciana Délcia Guia, Elisângela Rita, Vitória Adelino Dias Soares, Catarina André, Marinela Furtado Veloso

  • João Garção Borges - 90
90

Conclusão:

PRÓS: Todas as razões apontadas na crítica e seguramente o facto de NAYOLA ser, no quadro do cinema português e da animação nacional e internacional, uma obra que merece um lugar de grande destaque, quer pelo valor intrínseco da sua proposta fílmica, quer pela mestria com que combina diferentes influências e referências culturais, sem que o olhar europeu e ocidental dos principais mentores do projecto se apresentasse como redutor no quadro de representação cultural e sentimental de um universo objectivo e subjectivo representativo dos que vivem no dia-a-dia a memória e o pulsar próprio do modo de ser e estar da África meridional.

CONTRA: Foi já distinguido com vários prémios, mas como não andou a passear as suas virtudes pelos Óscares, ou contextos similares do ponto de vista mediático, arrisca-se como outros de igual valor a ser mencionado com alguma economia em alguns órgãos de comunicação social. Nada que impeça o público atento de lhe dar a mais ampla e devida atenção.

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