M3GAN 2.0 – Análise
A boneca assassina mais amada do cinema volta para uma sequela em que tudo é maior e mais ousado. “M3GAN 2.0” vem defender a Inteligência Artificial e propor a sua própria versão do “Exterminador Implacável – O Dia do Julgamento.”
O cinema não é uma ferramenta educativa ou um tratado ativista. Não é necessariamente predicado em mensagens, valorizado somente pelas ideias que tem a transmitir ao mundo. Toda a arte é política, mas nem toda a arte tem que estar em diálogo ativo com questões políticas. Também nesse sentido, defendemos que, enquanto cinéfilos, podemos apreciar filmes com os quais discordamos a nível ideológico, valorizando outros elementos presentes no objeto cinematográfico. Tudo isto para dizer que é difícil abordar “M3GAN 2.0” de Gerard Johnstone sem primeiro expressar o desagrado para com os seus conceitos basilares.
Em termos mais específicos, esta sequela ao pequeno pesadelo de “M3GAN,” originalmente lançado em 2022, afirma-se vocalmente pró-Inteligência Artificial. Num paradigma de Hollywood em que as inovações da IA nos aparecem como meio de cortar custos e maquinizar o que devia ser a expressão humana, este gesto surge como um mercenarismo nu e óbvio. Estamos na fronteira de um cinema feito em jeito impessoal, um produto a ser vendido e nada mais, uma forma de conteúdo que nem sequer valoriza o seu trabalhador. Ver “M3GAN 2.0” terminar com um discurso que equipara rejeitar os avanços IA a rejeitar o futuro da humanidade é suficiente para deixar um ludita maldisposto.
No entanto, também não se quer reduzir todo o projeto a questões de moralismo contrário. O filme é mais que isso e seríamos hipócritas, até incoerentes, se rejeitássemos a diva robótica com base em tais argumentos. Uma crítica mais forte será a da duração extremada. Porque já o primeiro “M3GAN” se esticava com 102 minutos para contar uma história que, na sua essência, pertence a uma tradição de filmes série-B, despretensiosos e sem noções de grandeza desproporcional. A sequela é ainda pior, tendo quase duas horas e nada na narrativa que justifique isso. A certa altura, torna-se repetitivo, para nada dizer da trama convoluta.
O Exterminador Implacável de saias.
Recapitulemos os eventos do primeiro filme. Gemma, uma cientista no ramo da robótica, viu-se no papel de mãe ao adotar Cady, sua sobrinha recentemente orfanada. Para ajudar a menina a lidar com o trauma e, pelo caminho, auxiliar o seu próprio projeto, Gemma construiu-lhe uma companheira androide – M3GAN. Apesar de parecer pouco mais que uma boneca animada, esse pequeno milagre tecnológico tinha inteligência artificial avançada, um gosto estranho por Sia e uma bússola moral extremamente descompensada. Encarregue de proteger Cady, M3GAN levou a missão ao nível da obsessão e matou muita gente pelo caminho. No fim, quando tentava eliminar Gemma, o monstro cibernético foi derrotado.
A história de “M3GAN 2.0” reencontra as personagens dois anos depois, quando Gemma se tornou numa ativista anti-IA e continua a ter problemas na sua relação com Cady. Esta, por seu lado, tem sentimentos muito conflituosos em relação ao fado de M3GAN e já mostra um interesse em seguir os mesmos passos da tia que, entretanto, está a romancear Christian, um ativista ainda mais militante. Em paralelo a tudo isto, o exército Americano implementou o uso de um robot assassino de fabrico próprio, tendo baseado a sua AMELIA no projeto original de M3GAN. Durante a sua primeira missão, ela desobedece às diretivas e começa uma caçada impiedosa, matando todos aqueles envolvidos com o seu fabrico.
Perante esta nova ameaça, os resquícios de M3GAN que se haviam preservado e subsequentemente infiltrado os sistemas operativos na casa da inventora vêm ao de cima. A missão continua a ser a salvaguarda de Cady e, para isso, este diabo feito anjo da guarda precisa de ser reconstruída. Ou seja, o robot vilão do primeiro filme torna-se em herói, empenhado em resguardar uma criança posta em perigo por uma outra máquina, ainda mais avançada e perigosa. Descrevemos “M3GAN 2.0” e “Exterminador Implacável 2” na mesma frase, sendo que Johnstone e Akela Cooper basicamente copiaram a premissa desse clássico de James Cameron.
Fazem-no sem vergonha nenhuma, tão descarados na citação que o texto começa a ganhar cheiros de homenagem afetuosa. Ou assim seria se toda a retórica pro-IA não se manifestasse na defesa de uma tecnologia generativa cujas criações dependem da inspiração direta noutras obras, um plágio mais indireto, mas não por isso menos sórdido. Isto também causa um grande problema para quem já esteja familiar com esse blockbuster de 1991. É que, assim que o espectador topa os ecos de cinema passado, “M3GAN 2.0” torna-se muito previsível, até um pouco chato.
M3GAN merecia uma sequela melhor.
Isto seria menos problemático com uma escala mais modesta ou uma duração menos excessiva. Só que os criadores da sequela não estão interessados em tais mostras de contenção, rendendo-se por completo à indisciplina e à indulgência. E, ocasionalmente, esse instinto resulta em momentos estupendos. Pensemos na conversa musicada entre M3GAN e Gemma no início do terceiro ato, substituindo a Sia do primeiro filme com uma canção de Kate Bush. De facto, o humor tende a funcionar muito bem quando se centra nas mulheres da fita, até a pequena Violet McGraw e seus insultos velados. Comentar que Allison Williams parece uma prostituta portuguesa é uma das piadas mais inusitadas e hilariantes em “M3GAN 2.0.”
As passagens que dependem das palhaçadas de Jemaine Clement são menos bem conseguidas, mas Aristotle Athari tem um fim muito bom, sua violência encenada como uma piada cruel. Ainda há muito a admirar na conceção de AMELIA, seu visual e presença predatória. A coreografia está bem apurada, mas é a prestação de Ivanna Sakhno que faz a figura vingar, com grande auxílio de toda a caracterização cosmética e os figurinos de Jeriana San Juan. Estes últimos merecem especiais parabéns, conseguindo escapar à ostentação anónima dos cenários que Brendan Heffernan e Adam Wheatley conceberam para esta Seattle imaginada.
Em última análise, a grande estrela de “M3GAN 2.0” continua a ser a sua personagem titular. Ora na prestação física de Amie Donald ou no trabalho vocal de Jenna Davis, M3GAN é uma agente de caos brilhante, diva suprema que, verdade seja dita, merecia uma sequela melhor que esta. A tentativa de a redimir nunca funciona como devia, a dimensão emocional do seu arco muito menos, sendo ela melhor como diabrete assumido ao invés de uma anti heroína. Ícone de terror da década, a assassina cibernética ainda tem muito que dar, mas, para a próxima, desejamos-lhe um texto adaptado às suas mais-valias. Já agora, que seja uma comédia de terror e não este thriller de ação com boas piadas, man em plena crise identitária.
M3GAN 2.0
Conclusão:
- Se o primeiro “M3GAN” se inspirou nos filmes de Chucky, esta sequela vai buscar a sua premissa e estrutura ao “Exterminador Implacável 2.” Esta troca de referências também envolve profundas transformações tonais, com o terror caricato dando lugar a algo mais próximo do filme de ação. A comédia mantém-se forte, mas nem as maiores palhaçadas conseguem suster esta história ao longo de duas horas. Quiçá Gerard Johnstone se deva ficar pela realização e deixar a escrita de argumentos a quem percebe do assunto.
- Dito isso, não obstante quão comprida a fita é ou quão previsível seu enredo possa ser, “M3GAN 2.0” vale pela sua personagem titular. Esse robot sedento de sangue continua a ser grande ícone do terror moderno. Preferimos quando sua programação tende para a vilania, mas, enfim, há humor a ser encontrado nas tentativas forçadas de um monstro se tornar em anjo da guarda.
- Uma coisa é certa, o franchise continua a ter grande potencial. Se esta sequela vacilou, talvez um terceiro filme resolva o assunto e consiga o tipo de redenção que os cineastas imaginaram para a sua maior estrela.