Misericórdia – Análise
“Misericórdia” de Emma Dante, é uma tragédia siciliana entre poesia e brutalidade, onde três prostitutas criam um rapaz deficiente num mundo de violência e ternura. Nas salas de cinema desde a semana passada.
Há filmes que nos confortam, há outros que nos desconfortam e depois há “Misericórdia”, o novo soco no estômago da realizadora-dramaturga-encenadora de teatro siciliana Emma Dante, que prefere filmar com sal, sangue e suor do que com açúcar. O que aqui se vê não é a Sicília postal das revistas de viagem, mas uma costa encardida de miséria, violência e resistência feminina. É o tipo de filme que Pasolini veria com um nó na garganta e diria: “Ainda há esperança no cinema italiano.”
Com base na sua própria peça de teatro, Emma Dante, entrega uma fábula negra que parece arrancada da terra com as unhas: três prostitutas criam, com um amor quase animalesco, um rapaz deficiente, O protagonista de “Misericórdia” é Arturo, mudo, epiléptico, com idade mental de criança. Criam-no entre os escombros de uma aldeia piscatória arruinada, à sombra de um patriarcado que tudo destrói, menos o amor.
Um cinema de carne e ossos (e muito lixo)
A ação decorre na província de Trapani, mas podia ser num planeta abandonado. As casas são barracos. O chão é lama. O mar é personagem. A montanha parece um deus cruel que lança pedras sobre os mortais. Arturo (numa interpretação visceral de Simone Zambelli) corre, dança, convulsiona-se, grita. À sua volta, Betta, Nuccia e Anna amam-no como mães que nunca o foram. Protegeram-no de um pai assassino, de uma sociedade putrefacta, de um destino anunciado.
A ironia é óbvia: são prostitutas quem mais o ama. São elas que o alimentam, limpam, ensinam, abraçam. Não o Estado, nem a Igreja, nem a moral. Três mulheres marginalizadas constroem, à sua maneira imperfeita, um santuário de compaixão, essa “misericórdia” que dá título ao filme.
Emma Dante filma “Misericórdia” com rigor teatral, mas com olho cinematográfico. Planos fixos, câmera próxima dos corpos, uma fotografia solar e poeirenta que nos cola à pele o calor siciliano, a humidade dos esgotos, a beleza escondida no grotesco. Há poesia — sim, muita — mas uma poesia feita com restos, com trapos e silêncios, onde cada gesto conta. E há também humor, aquele humor negro e trágico que brota nos lugares onde já só resta a sobrevivência.
A ferida e a redenção
“Misericórdia” é um filme árido, que não nos dá soluções, mas nos oferece humanidade. Um cinema que olha para os excluídos não com pena, mas com presença. Emma Dante recusa o miserabilismo fácil, o que aqui se vê é uma tragédia arcaica, quase mitológica, onde cada personagem carrega uma cruz, mas também uma centelha de salvação.
O plano final de “Misericórdia” — sem spoilers — é de uma beleza desconcertante. Quase onírico. Como se a própria realidade se suspendesse por um instante, para nos lembrar que, mesmo na lama, há espaço para o voo e para o sonho.
JVM
Misericórdia — Análise
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José Vieira Mendes - 80
Conclusão:
“Misericórdia” de Emma Dante não é um filme para toda a gente. Mas é um filme necessário. Um grito de revolta e ternura no cinema europeu, que continua a provar que é possível filmar a tragédia com verdade, o horror com compaixão e a miséria com arte. Emma Dante não suaviza nada. Mas também não desiste de acreditar no poder do amor, mesmo que ele venha de onde menos se espera.
Overall
80User Review
( votes)Pros
O melhor: A direção precisa e sensível de Emma Dante, entre o teatral e o poético. A interpretação comovente de Simone Zambelli. A força simbólica das personagens femininas. A fotografia quente e cruel. A honestidade emocional do filme: sem filtros, sem concessões, sem piedade.
Cons
O pior: O desconforto extremo pode afastar espectadores mais sensíveis. Algumas repetições narrativas e dramáticas podiam ser mais comedidas. A música final (“Avrai”, de Claudio Baglioni) pode soar deslocada, embora funcione emocionalmente.