Isabel Ruth com uma merecida homenagem. ©Leffest2026/Divulgação

Isabel Ruth: este rosto ensinou Portugal a olhar

Isabel Ruth é a actriz que fez do corpo uma gramática, da voz um sismógrafo e do olhar um país inteiro. O LEFFEST 2025 rende-lhe homenagem com um ciclo escolhido por ela e nós agradecemos a lição.

Há artistas que passam pelos filmes; Isabel Ruth passa por nós. Actriz-bailarina-poeta, transformou a câmara num espelho coletivo com o seu olhar firme. Nascida em Tomar, em 1940, formada na Royal Ballet School de Londres, trouxe para o cinema uma educação do corpo que não é adereço, é método. Cada gesto é frase, cada silêncio é subtexto, cada olhar é tese. Foi Ilda em “Os Verdes Anos” (1963), de Paulo Rocha, e com isso inaugurou, sem o saber, a modernidade do cinema português. Desde então, Isabel Ruth não “entra” em filmes, funda-os.

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Da bailarina à actriz que reescreve planos

Primeiro veio a dança: o rigor da barra, a disciplina de quem sabe que o corpo também pensa. Depois o teatro, onde aprendeu o risco e a pausa. E, finalmente, o cinema, onde Paulo Rocha lhe descobriu a vibração entre o pudor e a vertigem. Em “Os Verdes Anos” e “Mudar de Vida”, Isabel Ruth não interpreta papéis, mapeia um país. A Ilda “sopeirinha” carrega as fracturas entre campo e cidade, desejo e norma, futuro e medo. Em “Vale Abraão” (Manoel de Oliveira), como Ritinha, é quase topografia: o Douro feito carne e rumor. Em “Ossos” (Pedro Costa), torna-se pura matéria de bairro, uma luz a meio da penumbra. Não é fetichizada é convocada. E a câmara agradece.

Isabel Ruth
Isabel Ruth não “entra” em filmes, funda-os. ©Cinemateca Portuguesa/Divulgação

A estrangeira de casa cheia

Pasolini, Bertolucci, Jean-Claude Biette, Tonino De Bernardi, Raúl Ruiz: Isabel Ruth é uma portuguesa que nunca precisou de passaporte. Não “vai lá fora”, leva antes o país com ela. Itália reconheceu-lhe a estranheza luminosa (“Edipo Re”, “H2S”), França admirou-lhe a precisão. Ao regressar, os realizadores portugueses perceberam que tinham uma actriz que não compete com a câmara, compõe com ela. Trabalhou com Oliveira, Rocha, Morais, Villaverde, Botelho, Costa, Tréfaut, e em todos há a mesma vibração: Isabel Ruth não procura ser o centro, mas é impossível vê-la como periferia.

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A política do gesto

Isabel Ruth nunca discursou sobre política, encenou-a. A prova do vestido em “Os Verdes Anos” é uma tese sobre classe e desejo. A Ritinha de “Vale Abraão” observa sem falar, mas o seu silêncio pesa mais do que um manifesto. Em “Ossos”, uma inclinação mínima do corpo é uma elegia social. Em “O Bobo”, de José Álvaro Morais, é a figura que liga o Portugal real e o imaginado. Isabel Ruth é a política do gesto: sem bandeira, mas com posição.

Cinemateca Portuguesa
Maria de Medeiros e Isabel Ruth. ©Cinemateca Portuguesa/Divulgação

A modernidade que envelhece bem

O segredo? Não querer ser eterna, apenas estar viva. Aos 84 anos, lançou “Português Suave”, um álbum ou melhor uma colecção de canções-poemas que é, como tudo nela, um acto de amor e inquietação. “Dormir é perda de tempo”, disse uma vez. É assim desde sempre: uma modernidade que envelhece bem porque nunca quis parecer nova. O corpo aprendeu a medida da emoção; a voz aprendeu a falar sem gritar.

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Isabel Ruth
Isabel Ruth em “Mudar de Vida”. ©DocLisboa/Divulgação.

O olhar que nos devolve

Isabel Ruth não é só uma actriz, é uma lente. Como escreveu João Bénard da Costa, é “o primeiro grande nome do Cinema Novo”, mas também o seu espelho. Cada filme seu é uma forma de o cinema português se ver e se rever. Como Ilda, Ritinha ou simplesmente Isabel, ela mediatiza o olhar e devolve-nos o que ainda não sabíamos ver.

O acto, a faculdade, o milagre

Hoje, 13 de Novembro, quando o LEFFEST 2025 lhe presta homenagem, Isabel Ruth não precisa de discursos nem de coroas de flores: basta aparecer, erguer o olhar e o resto acontece. Há sessenta anos que o país aprende com ela a ver — e a pensar — a sua própria imagem. Talvez seja esse o milagre da sua arte: olhar connosco o que já não víamos e, no processo, ensinar-nos a existir um pouco melhor. Além disso e posso dizê-lo, é uma mulher de uma enorme beleza interior.

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Isabel Ruth
Isabel Ruth “é “o primeiro grande nome do Cinema Novo”. ©Cinemateca Portuguesa/Divulgação

Uma homenagem com a assinatura dela

O LEFFEST decide fazer-lhe justiça poética: homenagear Isabel Ruth com um ciclo inteiramente escolhido por ela. Mais do que uma retrospectiva, é um autorretrato em movimento, uma viagem pela história viva do cinema português. De “Os Verdes Anos”, onde tudo começou, a “Ossos”, que transforma o corpo em resistência silenciosa, passando por “Inquietude” (Oliveira), “O Rio do Ouro” (Rocha), “Peixe-Lua” (Morais) e “Agosto” (Silva Melo), o ciclo avança como uma memória em camadas. Da fase internacional surgem “Ecco ho letto” (Biette), “Morire gratis” (Franchina), “Il rapporto” (Massobrio) e “Appassionate” (De Bernardi), encerrando como uma declaração de amor à paixão, o último idioma artístico de Isabel Ruth. Não é um greatest hits, é um gesto de coerência. O LEFFEST não a cristaliza num pedestal, devolve-a de facto ao seu habitat natural: o movimento e o cinema.

JVM

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