A Despedida, em análise
Lulu Wang assina, com a sua primeira longa-metragem, um conto autobiográfico de dilemas familiares e barreiras culturais. “A Despedida” valeu a Awkwafina o Globo de Ouro para Melhor Atriz numa Comédia.
Muitos são os cineastas que se viram para a autoficção como máxima expressão do seu ethos artístico. 2019 viu velhos mestres refletirem sobre a sua vida e seu legado cinematográfico, realizadores consagrados a perscrutarem a Hollywood da sua infância e até uma rainha da Nouvelle Vague a resumir o trabalho de toda uma vida antes da morte. No mesmo ano, no Festival de Sundance, outra realizadora contemplou a sua história pessoal e a minou, extraindo uma joia cinematográfica tão mais bela pela ressonância sentimental que tem com os seus criadores.
A grande diferença é que “A Despedida” é o primeiro capítulo de uma nova filmografia e não o seu epílogo. Lulu Wang pega na sua vida e torna-a em ficção, em drama poderoso e poderosamente filmado. Há candura no exercício e muita emoção, mas desengane-se quem supuser que este filme é psicoterapia teatrada e nada mais. O propósito da obra não é simplesmente o exorcismo pessoal, mas a proposta do cinema enquanto máquina de empatia e partilha. O rigor formalista de uma artista ponderada está em evidência assim como a disciplina de uma grande diretora de atores.
Enfim, antes de nos continuarmos a desventurar por um hino de admiração a Lulu Wang, talvez seja melhor dar contexto narrativo a esta análise. “A Despedida” começa nos EUA, onde o espectador se depara com Billi, uma protagonista jovem e desamparada. Ela é filha de pais que imigraram da China, sua identidade um meio termo precário entre individualismo americano e a tradição de uma família sino-descendente. Ao longo desta história, a posição da jovem entre culturas é evidenciada, com a moralidade de uma americana a colidir com o sentido de dever familiar e comunitário de uma devota filha chinesa.
Acontece que Nai Nai, a adorada avó de Billi está a morrer com um cancro em fase terminal. A família toda acabou de descobrir o fado trágico e a única pessoa que ainda não sabe é a própria Nai Nai. Como dita o costume, a família da idosa decidiu esconder-lhe a verdade sobre o seu estado de saúde, tirando-lhe o fardo do luto próprio e do desgosto. Mesmo assim, existe a necessidade da despedida e da reunião familiar pelo que se orquestrou um engodo. O primo de Billi, há muito imigrado no Japão, vai voltar à cidade dos pais para desposar a namorada nipónica, congregando assim todos os parentes em volta de Nai Nai.
Pela sua parte, a senhora terá a felicidade de ver um dos netos casar por fim e estar com toda a família ao mesmo tempo. Apesar da proximidade emocional de todos, as distâncias geográficas têm feito com que tal evento seja uma enorme raridade e algo precioso. O único problema aparente neste esquema é Billi, cujos sentimentos estão à flor da pele e à vista de todos. Se ela se desmanchar a chorar em frente a Nai Nai, como é que a ilusão de boa saúde e prosperidade familiar se manterá?
A complicar ainda mais a situação estão todas as barreiras culturais que separam as várias gerações de diáspora chinesa. Há quem veja todo o segredo como imperdoável, há quem o veja como uma piedade. Em planos gerais ricos em humanidade comungada, Wang mostra-nos as gradações de remorso e amor familiar a correr pelo seio da família. A câmara não vilifica ninguém e tão pouco julga, simplesmente observa e concede a benesse da simpatia sentida a todas as personagens.
isso não implica que o filme se recuse a dar forma ao conto pessoal. O engenho cinematográfico está em evidência nas imagens cristalinas do filme, cheias de espaço cavernoso por cima da cabeça dos atores e composições que ora centram Billi ou a marginalizam do grupo de parentesco. É uma mise-en-scène do desconforto sublimado, as emoções conflituosas das personagens tornadas na estrutura das cenas, sua montagem fragmentada e fotografia alienante. A banda-sonora de ares clássicos só sublinha este jogo, ditando ritmos inaturais para as figuras em cena. Tudo funciona em torno da experiência sentimental de Billi e companhia.
Uma experiência que não é de fácil desafogo ou resolução. De facto, “A Despedida” é mais ou menos desprovida de um final conclusivo e fechado, pois a vida real em que se baseia não segue as regras da narrativa em três atos. Não que essa lacuna se faça sentir de forma debilitante. De facto, só intensifica a experiência geral, feita ainda mais primorosa pelo trabalho de um elenco perfeito. Como Billi, Awkwafina é a personificação de jet lag mesclado com a dúvida de uma neta que não sabe se está a trair a avó. Nai Nai, pelo seu lado, é interpretada pela magnífica Shuzhen Zhao, uma atriz que vibra com afeto caloroso, mas também deixa alguma ambiguidade e mistério na caracterização. Será que Nai Nai sabe mais do que revela?
A Despedida, em análise
Movie title: The Farewell
Date published: 28 de January de 2020
Director(s): Lulu Wang
Actor(s): Awkwafina, Zhao Shuzen, Diana Lin, Tzi Ma, Hong Lu, Han Chen, Aoi Mizuhara
Genre: Comédia, Drama, 2019, 100 min
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Cláudio Alves - 90
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Maggie Silva - 90
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José Vieira Mendes - 80
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Virgílio Jesus - 100
CONCLUSÃO:
“A Despedida” é uma extraordinária proeza de autoficção pela parte de Lulu Wang. Ela partilha os dilemas da sua família e o elo entre neta e avó com extrema candura e primor formalista. Atores impecáveis e mise-en-scène severa elevam a produção acima do confessionário público. Complicado e comovente em igual medida.
O MELHOR: A fotografia cheia de vazios desconfortáveis e o trabalho de um notável elenco.
O PIOR: A mensagem desnecessária que a realizadora deixa no final da obra. Se é para o final ser aberto, que o seja com bravura e nada de fotos reais a quebrar a ilusão da dramaturgia.
CA