"A Metamorfose dos Pássaros" | © IndieLisboa

IndieLisboa ’20 | A Metamorfose dos Pássaros, em análise

Catarina Vasconcelos levou a sua primeira longa-metragem à Berlinale, a Taipei, San Sebastián e outros festivais de cinema pelo mundo fora. Depois de ganhar muitos prémios, “A Metamorfose dos Pássaros” chega ao 17º IndieLisboa, onde se afirma como um dos melhores filmes na Competição Nacional.

Ao som de Shubert, Catarina Vasoncelos embala a audiência com imagens de vegetação verdejante, água, pássaros e suas penugens coloridas. Os detalhes parecem tirados de alguma montagem elemental. Quiçá fragmentos recortados de um filme de Terrence Malick ou uma versão intimista dos murais cinematográficos de Godfrey Reggio. A imagética e sua montagem podem resvalar para o abstrato, mas todo o âmago, o cerne fundamental de “A Metamorfose dos Pássaros”, é extremamente concreto no seu detalhe biográfico.

Com o uso do testemunho direto e da narração em voz-off, a cineasta conta a história da avó paterna através dos olhos do seu pai. Tal como a realizadora, ele é um filho que perdeu a mãe e os dois encontram-se através dessa experiência conjunta. Contudo, esta não é só a história de uma mãe vista pelo filho, mas o retrato de duas mães. Ao mesmo tempo que homenageia a avó, Vasconcelos recorda a sua própria mãe e fala-nos sobre ela. São dois fantasmas invocados pelos filhos que amam suas progenitoras, que ainda sentem o vazio que elas deixaram e que agora as tornam em musas do grande ecrã.

a metamorfose dos passaros critica indielisboa
© IndieLisboa

Fala-se da História de Portugal, de pátrias e desses filhos sem mãe, do colonialismo em Angola e Moçambique, da metamorfose que é a vida de todos nós. É claro que, na boa tradição do cinema português pós-Revolução dos Cravos, esta trata-se de uma experiência onde a membrana que separa o documentário da narrativa é porosa. Não podia deixar de ser assim com todas aquelas imagens simbólicas. Vasconcelos jamais esconde as camadas de artifício dramático que separam seu filme do documentário tradicional. A certa altura, o pai até menciona como o guião troca nomes e identidades. Como sempre, o caminho para a verdade profunda é feito pela falsidade e pelo espetáculo.

A vinheta estática domina essa espetacularidade do filme. Também vemos tableaux que estão algures entre o teatro e a pintura, como imagens de hibiscos em flor e naturezas mortas em tons de rubro e laranja. O tempo é como água, a memória um oceano de correntes que nos querem afundar, que nos puxam para baixo e nos afogam em transcendente asfixia. A onda da perda cai-nos na cabeça, mas, ao mesmo tempo, Vasconcelos sabe como pintar esse líquido que nos entra nos pulmões de modo que encanta e seduz, que comove.

Além disso, há lógica na sua imagética abstrata. As árvores em que os pássaros poisam são como a fundação de uma família. Quando elas caem, a floresta treme e deixa os animais sem poiso. De certa forma, a árvore é a mãe, sua queda a morte e os pássaros em desamparo são os filhos voando, a tentar encontrar nova estabilidade num mundo cheio das cicatrizes deixadas pelas árvores que já não estão cá. A água também remete para essa força estabilizadora das mães que se foram. A avó de Catarina foi o porto que deu salvaguarda ao avô, um marinheiro sempre perdido no mar e longe da família. Quando esse porto desapareceu, também ele foi como os pássaros sem sua árvore.

Por muito que Vasconcelos e o filme se possam perder nestas espirais de devaneio filosófico e poesia visual, há sempre aquele forte sentimento pessoal a ancorar “A Metamorfose dos Pássaros”. Para quem julgue que este é um exemplo de cinema intelectualmente intransponível, esqueçam tais medos. Todos percebemos a dor de perder alguém que nos é querido. Nessa dor, nessa especificidade sublime, Vasconcelos encontra a universalidade do projeto e convida-nos a comungar com ele.

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A certo ponto, “A Metamorfose dos Pássaros” ganha uma qualidade quase ritualista, como se o ato de o ver fosse um trabalho de devoção espiritual, de feitiçaria talvez. O escavar da experiência pessoal e exumação de dores antigas por parte das figuras em cena, leva-nos a fazer o mesmo. Passado algum tempo, já o ar da sala de cinema se encontra saturado pelas reflexões do espetador, também ele lembrando uma mãe ou outra pessoa amada que o Anjo da Morte levou. Assim o filme é ritual e é espelho, é comunhão do cinéfilo e dos filhos que aqui são levados a perguntar-se até que medida o passado familiar define quem somos. Todos nós somos parte das nossas mães e elas parte de nós. “A Metamorfose dos Pássaros” é parte de Catarina Vasconcelos e agradecemos o privilégio dela partilhar isto connosco.

A Metamorfose dos Pássaros, em análise
a metamorfose dos passaros critica indielisboa

Movie title: A Metamorfose dos Pássaros

Date published: 3 de September de 2020

Director(s): Catarina Vasconcelos

Actor(s): Manuel Rosa, João Móra, Ana Vasconcelos, Henrique Vasconcelos, Inês Campos, Catarina Vasconcelos, José Manuel Mendes, João Pedro Mamede, Cláudia Varejão, Luísa Ministro, José Maria Rosa, Ana Margarida Vasconcelos, José Vasconcelos, João Vasconcelos, Nuno Vasconcelos

Genre: Documentário, Biografia, Drama, 2020, 101 min

  • Cláudio Alves - 85
85

CONCLUSÃO:

Na interseção do cinema e da memória, pai e filha encontram-se e partilham suas mágoas, suas perdas e seu luto. Catarina Vasconcelos compõe um belíssimo poema audiovisual em “A Metamorfose dos Pássaros”, filme que se encontra algures entre o documentário e o devaneio da lembrança.

O MELHOR: A imagética lírica capturada em cristalina película, com cores vibrantes e a textura granulosa da memória cinematográfica em 16mm. A fotografia de Paulo Menezes merece um prémio!

O PIOR: A componente histórica do filme nunca se integra totalmente na reflexão pessoal. Pelo menos, parece menos desenvolvida do que merece.

CA

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