O Ancoradouro do Tempo | Entrevista a Sol de Carvalho (Parte 1)
Na passada segunda-feira 30 de junho, entrevistei por videochamada o realizador Sol de Carvalho. O autor tem uma nova longa-metragem, “O Ancoradouro do Tempo”, que estreou na passada quinta-feira 26 de junho nas salas de cinema nacionais.
Este novo filme foi pretexto para uma conversa com o realizador onde abordámos a história do filme, adaptada de “A Varanda do Frangipani” de Mia Couto, bem com o trabalho de rodagem com os atores e equipa. Optei por dividir a entrevista em duas partes. Nesta primeira parte, abordamos a narrativa do filme.
Sol de Carvalho e Mia Couto
O livro e o filme
Muito obrigado ao Sol de Carvalho por dar a entrevista à Magazine HD. Eu estive a ver o filme este fim de semana, gostei bastante, embora o final fosse um bocadinho, digamos, estranho, mas também podemos falar mais daqui a pouco.
Eu, entretanto, fui aqui à Biblioteca Municipal buscar o livro do Mia Couto porque eu não conhecia, não conhecia o livro. Não o li. Também não o estive a ler agora porque não tive tempo suficiente para isso nestes dois ou três dias. Mas estive a dar uma vista de olhos e vi que, em geral, segue mais ou menos a linha do livro. Embora para mim, mesmo sendo uma adaptação de uma obra literária, são sempre duas coisas diferentes. Um livro é um livro, um filme é um filme. Eu também não gosto de levar à letra se existem muitas mudanças ou não sobre o livro.
Percebi aqui que o inicio é que é um bocadinho diferente, porque fala aqui de uma personagem que eu pelo menos não me apercebi de ter aparecido no filme, que é o Ermelindo Mucanga, que supostamente será um morto, mas que não é o morto do filme. Mas, de resto, pareceu-me mais ou menos linear em relação ao livro.
Eu vi dois dos filmes anteriores que o Sol fez: o “Mabata Bata” e o mais recente “Kutchinga”. São dois filmes muito diferentes. Mas o “Mabata Bata” também tem alguma relação com a literatura, porque também é uma adaptação de um conto do Mia Couto. Nesse sentido, a minha primeira pergunta é um bocadinho nessa onda. Uma vez que esta é uma segunda colaboração com o escritor Mia Couto, queria perceber como é que surgiu o vosso trabalho colaborativo.
Uma colaboração antiga
Eu creio que acabou de dizer. Portanto, eu tinha escrito um guião há muito tempo do “Mabata Bata” que tinha guardado na gaveta e depois apareceu um concurso em que dizia que devíamos fazer um filme a partir de uma obra literária. Nós somos amigos há 40 anos e, naturalmente, eu consultei-o e ele concordou em fazer uma obra que eu apenas, digamos, adquiria os direitos da obra de adaptação e fazia a adaptação como eu o desejava. Assim foi feito.
A Varanda do Frangipani
O filme saiu, ele gostou do filme e sugeriu que pudéssemos fazer alguma coisa em conjunto. E eu disse: “Ok, vamos ver isso”. E surgiu assim “A Varanda do Frangipani”. Ele solicitou ainda uma outra condição, que era uma participação ativa na escrita do guião. E assim foi. Essa participação foi feita desde o princípio, desde a escrita, e tomada numa posição de que nós poderíamos, digamos, aquilo que considerássemos bom, íamos guardar, aquilo que considerássemos já ultrapassado ou não adequado ao filme que queríamos fazer, iríamos mudar. E, portanto, não houve, digamos, um problema sequer de discussão entre nós sobre… Porque aquilo que nós achámos que devíamos mudar, mudámos. Aquilo que nós achávamos que devíamos guardar, guardámos. Foi isso.
Eu acho que, no final do resultado, a nossa amizade saiu mais forte, porque em casos destes há sempre o risco de… dois riscos principais, o dos egos, vamos dizer assim. Portanto, cada um quer puxar a brasa à sua sardinha. E estou a dizer egos no sentido positivo do termo. E a outra era o tipo de linguagem a utilizar. Quer dizer, se era um filme mais literário, se era um filme mais visual. Portanto, era um pouco sobre isso. Acho que não houve, sinceramente, não houve nenhum… Não correu nenhum risco, digamos assim. Foi sempre feito nesta perspetiva de que o filme é que tinha que vencer e o filme é que era o importante. E nós dois sempre nos colocámos nessa posição. E, pronto, acho que foi um resultado muito positivo. Ao ponto de que continuamos a colaborar.
A Varanda do Frangipani transforma-se em O Ancoradouro do Tempo
Um livro cinematográfico
Eu penso que agora a segunda pergunta foi mais ou menos respondida com aquilo que o Sol me disse, mas, de qualquer maneira, eu queria perceber… A minha segunda pergunta era: Qual o interesse na adaptação d’ “A Varanda do Frangipani”? Ou seja, percebi que isto surgiu logo do Mia Couto, não é?
Sim, ele achava que era um filme, dos vários pedidos de filmes que tinham sido feitos para ele, ele achava que era um filme que tinha uma história pela qual ele tinha uma certa… um certo interesse e uma certa paixão pessoal. Isso do lado dele e daí a sugestão dele.
Para mim, o facto de que o filme era basicamente passado no mesmo ambiente. E, portanto, que é o tipo de cinema que eu gosto de fazer, um cinema mais contido em termos de espaços, mas mais aprofundado em termos de personagens. Quer dizer, cabia perfeitamente naquilo que eu imagino fazer num filme e até considerando as condições de produção que nós temos. Nós não temos exatamente condições de produção para fazer filmes com cenas em Marte ou em estúdios caríssimos ou coisa assim. Portanto, apesar de que a ida para a Ilha de Moçambique foi pesada do ponto de vista de orçamento, mas era uma opção.
Para lá do policial…
Quer dizer, havia ali vários elementos de interesse. Primeiro, o ser uma história policial escrita ao contrário em que os suspeitos é que indicam ao investigador o que está a passar. Segundo, ser um filme em que o polícia – que é um filme sobre integridade – e, portanto, em que o polícia, para além do confronto, da procura da verdade, ele tem o confronto consigo próprio. Portanto, com a sua identidade, com a história da sua família, porque ele vai para o sítio onde ele nasceu. Portanto, há toda essa relação. Então, o filme tinha todos os ingredientes, digamos assim, que me agradavam e agradavam a ele, e daí a escolha.
Um caso de polícia diferente em O Ancoradouro do Tempo
Todos são culpados
Por acaso, uma das minhas perguntas também ia nessa questão curiosa de inverter o tradicional caso de investigação dos assassinatos. Não é aquela coisa tradicional do “quem fez” que a gente conhece, por exemplo, da Agatha Christie. Aqui todos eles querem ser culpados. Ou seja, isso seria uma forma de escape daquelas personagens ao estarem ali, digamos, presas naquela fortaleza. Porque, pronto, há sempre um bocadinho de loucura em cada um deles a meu ver…
Sim, eu acho que a vida, ela própria, é uma loucura, mas pronto. O que eu acho que acontece ali, digamos, é aquilo que me fascinava um pouco, é que aquele lugar não é um lar de idosos. É um refúgio a pessoas que, de alguma forma, sofreram durante a vida e que procuram um refúgio até para guardar a sua própria história, vamos dizer assim. E vão-se encontrar ali, num sítio que é dirigido por uma pessoa que também está no refúgio, digamos assim, no sentido até político, vamos dizer.
E, portanto, há ali uma comunhão com o espaço, porque esse espaço, também é um espaço emparedado, é um espaço, digamos que, cujas paredes representam a idade, mas, ao mesmo tempo, essas paredes representam resistência.
Paredes que falam por si
Elas, as paredes, parecem ter olhares. Se notar com cuidado o filme vai ver que muitas das cenas se passam utilizando, digamos, espaços geográficos do filme, que parecem ser pessoas a olhar para o que está-se a passar e, portanto, fizemos isso. Quer dizer, havia esta comunhão. E eu acho que é esse ponto, digamos assim, de encontro, que faz com que eles estejam apaixonados por aquele… Apaixonados não, eles sentem aquele refúgio como a sua, digamos, última chance de sobrevivência. E, portanto, eles não querem que aquilo seja perturbado por outros elementos e daí que se ofereçam…
É um bocado o caso como as formigas, não é? Quando se veem atacadas por – e as abelhas –, quando se veem atacadas por um elemento exterior mais forte, elas sacrificam-se, suicidam-se, vamos dizer assim, na mão do agressor. Então é um pouco… É assim que elas veem, quer dizer, aquele polícia que vem ali para os investigar, na verdade, vai perturbar todo o seu espaço de vida. E elas tentam reagir a isso. E, na minha opinião, com alguma legitimidade em termos de reação, não a legitimidade em termos de valores judiciais.
Um consultor para o argumento de O Ancoradouro do Tempo
Daqui a pouco já vou continuar também a questão da história, mas queria aqui só fazer uma outra pergunta mais geral sobre o processo. Eu apercebi-me que o José Eduardo Agualusa depois também contribui, digamos, para a construção do argumento.
O José Eduardo Agualusa vive na ilha de Moçambique, primeiro ponto. Segundo ponto, ele tem uma amizade muito grande com o Mia Couto e eles discutem muito e falam muito sobre os trabalhos deles e tudo isso. Eu não conhecia o Agualusa pessoalmente, conheci-o neste processo. Então, ele teve algumas reuniões connosco. Discutimos, conversámos, falámos, deu opiniões. Umas guardámos, outras não guardámos. É assim, fez o papel típico de um script doctor, que é uma pessoa que não está envolvida diretamente, olha de fora e levanta questões e coloca questões e tudo isso. Esse foi o papel dele e bem feito, é assim mesmo.
Ou seja, de certa maneira, tentar perceber o lado de uma pessoa que está de fora, ou seja, próximo do público para perceber, digamos, o que está a falhar e o que não está a falhar.
Quer dizer, está fora, mas conhece bem o ambiente da ilha. Portanto, ele não é exatamente, totalmente, exterior. É um exterior-interior, vamos dizer assim.
Uma fortaleza com história em O Ancoradouro do Tempo
Onde encontrar a fortaleza para O Ancoradouro do Tempo?
A questão da fortaleza, que eu também achei interessantíssima… Pronto, eu como não conheço o livro em pormenor… Se calhar, isso no livro já estava propriamente dito, mas queria perceber se aquela fortaleza já estava pensada para este filme ou se procuraram diferentes locais.
A Fortaleza já foi uma inspiração para o Mia no livro original. Mas nós, depois, o que nós queríamos era encontrar uma fortaleza numa ilha onde se tivesse acesso difícil. A ilha de Moçambique tem muita população, mas nós isolamos completamente a população. Não queríamos colocar ninguém fora do ambiente que nós queríamos falar e, portanto, passou a ser um cenário de uma potencial… Ou, digamos, um cenário onde só havia uma fortaleza e, pronto, e o mar que o circundava. O que não é o cenário verdadeiro. O cenário verdadeiro tem muitas pessoas que, aliás, participaram no filme.
Mas esta ideia da Fortaleza, como é que eu posso dizer? Porque é que a gente gosta de ver castelos? Porque é que a gente gosta de ver as igrejas antigas e as histórias? Porque elas representam, digamos, um… Representam um bocado o caminho pelo qual nós chegamos aqui. Ou chegamos aqui onde quer que a gente esteja. E a gente tem esses elementos físicos de referência, esse património que nos é, digamos, que nos é ligado. Então, neste caso, é o caso da ilha de Moçambique. Trata-se de um edifício que é considerado Património Mundial pela UNESCO.
O passado da fortaleza
Ao mesmo tempo, tem alguma intervenção de remodelação, mas, ao mesmo tempo, corresponde um pouco a esta ambiguidade que a gente tem em relação à História em que guardamos da parte da História, aquilo que nos interessa, às vezes, e deixamos as outras partes. Portanto, a Fortaleza tem, digamos, um certo ambiente de abandono.
Embora, existam atividades lá dentro – que nós não mostramos no filme, mas existem. Então, esse abandono, mas ao mesmo tempo essas paredes muito fortes que resistem, mesmo que sejam por luzes que já não sejam as luzes elétricas, porque era tudo usado com a luz tradicional. Mostra um pouco, faz esse contraponto, ou, se quiser, sublinha um pouco essa ideia do que é que são aqueles velhos. Aqueles velhos são fortalezas, todos eles. Portanto, são pessoas que transportam essas histórias. Estão perturbados. Estão, digamos, magoados, mas transportam uma história que a gente tem que ouvir ou que a gente deve ouvir. Então, é isso, a fortaleza é mais um personagem.
Exato, também sinto isso. Aliás, a minha próxima pergunta também vem um bocadinho nesse sentido porque eu sinto que a fortaleza tem um significado muito próprio porque todo o seu interior, ou estará inacabado ou estará, digamos, desconstruído a posteriori – isso aí não sei -, mas existe, em certa medida, para mim, aqui uma ligação, uma metáfora, digamos assim, uma simbologia clara entre a fortaleza e estas personagens.
Exatamente, exatamente. Sobre isso, subscrevo.
Afinal, quem matou Vasto Excelêncio, em O Ancoradouro do Tempo?
Ficamos com a dúvida…
Depois, voltando também à questão do assassinato. Para lá desta construção, digamos, invertida… Por exemplo, o filme começa logo com uma suspeita, porque nós vemos a personagem do Vasto Excelêncio e depois ouvimos um tiro e vimos que a Marta foi na direção dele. Ou seja, nesse sentido, supomos que terá sido ela que o matou, não é? Mas, na verdade, depois, no final também não ficamos 100% esclarecidos…
Uma enorme discussão que, inclusive, levou a que alguém meu amigo escrevesse um texto de quatro páginas sobre quais eram as hipóteses de quem matou Vasto Excelêncio. Era uma coisa que achava-se que era importante clarificar no filme. Nós deixamos essa decisão em aberto porque, na verdade, o que nós vemos é uma pistola deste lado [esquerdo] e uma sombra deste lado [direito]. Portanto, e o homem colocado entre duas armas. Se é a arma da direita que matou, se é a arma da esquerda, e isto sem qualquer conotação política, digamos. Se é a arma da frente, se é a arma de trás, não é importante no caso.
Um crime justificável
No caso, o que é importante é que ele já chegou a um ponto, que já é um ponto sem retorno e o ponto sem retorno é a morte. E isso, se quiser, é uma fábula sobre o que acontece aos grandes corruptos. Na verdade, eles acabam por morrer como todos os outros e a história do filme é toda a história de um processo de corrupção que começa por um desapontamento dele em relação àquilo que eram os sonhos. Depois de uma viragem, digamos, no interior do seu pensamento.
É que ele, digamos, começa a subir cada vez mais a posição daquilo que é o suposto inimigo, que devia ser o seu inimigo. Ou seja, torna-se o inimigo. E, no momento em que já se propõe o tráfico de albinos, pronto, ele mesmo que queira sair já é tarde. Naquele momento já sabe, até em termos práticos. Já é uma pessoa que dentro da quadrilha já sabe muita coisa, que não pode continuar vivo porque é um perigo para a própria quadrilha, vamos dizer assim.
Então, quer dizer, foi a quadrilha que o matou? Eu digo: sim, pode ser. Foi ela que o matou por acidente? Sim, pode ser, pode ter sido. Mas não creio que isso fosse uma questão importante a resolver no filme. O importante é que, naquele momento, seja num desastre de carro, seja por não conseguir nadar, seja por um tiro, aquele processo não tem continuidade.
Sim, exatamente, concordo.
Queres saber mais sobre O Ancoradouro do Tempo?
Esta foi a primeira parte da entrevista a Sol de Carvalho sobre o seu filme “O Ancoradouro do Tempo”. Se já viste a longa-metragem, acredito que certamente gostaste de ler o depoimento do realizador. Além disso, certamente descobriste coisas novas sobre “O Ancoradouro do Tempo”…
Não percas a segunda parte da entrevista que será publicada já amanhã, terça-feira 8 de julho, aqui no site da Magazine HD. Nesta primeira parte da entrevista sobre “O Ancoradouro do Tempo”, Sol de Carvalho explicou os motivos pelos quais adaptou “A Varanda do Frangipani” de Mia Couto e como foi feita a adaptação cinematográfica da obra. Amanhã, vais poder saber mais sobre os atores e sobre a rodagem do filme!