1º Cine Atlântico (Dia 2): ‘Yvone Kane’ ou Reconstruir os Afectos

Depois de ‘A Costa dos Murmúrios’, a realizadora Margarida Cardoso e a actriz Beatriz Batarda juntaram-se novamente em ‘Yvone Kane’ um drama familiar de contornos políticos, rodado em África, sobre os fantasmas da morte e da história pós-colonial. É o primeiro filme da tarde da Mostra de Cinema Português de Hoje, na Ilha Terceira.

Cine Atlântico

Rodado parcialmente em Moçambique, o último filme de Margarida Cardoso marca uma nova colaboração entre a a actriz e a realizadora depois de A Costa dos Murmúrios, a impressionante adaptação do romance de Lídia Jorge, filme que marcou o primeiro cruzamento entre estes três talentos femininos e nacionais.

Margarida Cardoso

Vê trailer de Yvone Kane 

Este Yvone Kane foi agora escrito pela própria realizadora, num regresso a África para contar a história de uma ex-guerrilheira e activista política, num país não especificado, assombrado por uma história pós-colonial, e onde se cruzam uma mãe (a atriz brasileira Irene Ravache) e uma filha (Beatriz Batarda), que lidam cada uma à sua maneira, e por razões distintas, com os fantasmas da morte.

‘Yvone Kane foi agora escrito pela própria realizadora, num regresso a África para contar a história de uma ex-guerrilheira e activista política,…’

Partindo dessas histórias pessoais, o filme centra-se no drama familiar, feminino e feminista; e depois em sentido mais amplo procura juntar como num puzzle, os fragmentos de um país sem nome que remete de certa forma para Moçambique — onde a realizadora tem raízes — assombrado e destruído pelo legado da guerra civil pós-libertação colonial.

Yvone Kane

As duas mulheres são mãe e filha, mas tornam-se neste filme num exemplo de como os laços de sangue nem sempre correspondem aos laços afectivos. Sara (Irene Ravache) é uma médica branca, antiga guerrilheira, que lutou e apoiou uma revolução africana muito semelhante à revolução cubana.

‘…os fragmentos de um país sem nome que remete de certa forma para Moçambique, assombrado e destruído pelo legado da guerra civil pós-libertação colonial.’

Uma sua amiga Yvone Kane, com que privou de perto foi uma Che Guevara feminina local, que acabou mitificada depois de ter sido assassinada. O compromisso político de Sara teve os seus custos igualmente no que diz respeito a uma vida familiar normal: enviou os filhos para Portugal e ficou em África, a trabalhar. No entanto, a luta de Sara já não é mais política, mas antes contra um cancro terminal. A sua filha Rita (Beatriz Batarda) é uma jornalista que vai investigar a morte de Yvone Kane. Para isso, naturalmente regressa ao seu país de origem e à casa da sua mãe. Se o fantasma da morte eminente paira sobre Sara, igualmente sobre Rita existe a dor da perda recente da sua filha.

Yvone Kane

Desse ambiente pós-colonialista que envolve a história, surge desde logo a fractura entre os locais e os colonizadores, o racismo e a impossibilidade de uma integração plena, da qual e apesar do seu espirito revolucionário Sara é o exemplo mais perfeito. Yvone Kane é por isso o retrato de um país marcado pelas tragédias humanas e por superações possíveis, que Margarida Cardoso filma com um certo fascínio e distância necessária, para fazer passar para o espectador o sentimento de estranheza e assombro dos personagens, sobretudo dessa relação mãe-filha.

‘…conseguem tirar partido das paisagens e ambientes, captando a sua beleza, fazendo sobressair os seus contornos mais trágicos…’

De regresso a Moçambique, Margarida Cardoso, contou obviamente com o apoio de um grande artista local: o produtor, realizador e sobretudo extraordinário director de fotografia João Ribeiro, que em Yvone Kane, consegue tirar partido das paisagens e ambientes, captando a sua beleza, fazendo sobressair os seus contornos mais trágicos: o hotel onde Rita acaba por se instalar é um verdadeiro símbolo do despojo e da reconstrução de um país depois da guerra.

JVM

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