10 filmes esquecidos pelos Óscares | Aquarius

Um poema de indignação furiosa pontuada por rasgos de transcendente graça, Aquarius é a joia da coroa nas filmografias de Sônia Braga e Kleber Mendonça Filho.

 


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aquarius sonia braga

Hoje em dia pode não o parecer, mas o festival de Cannes carrega no seu legado um grande peso político. Afinal, a própria criação do festival nos anos 40 foi uma ação reacionária contra o Festival de Veneza cujo prémio principal tinha o nome de Taça Mussolini, uma clara reflexão das suas inclinações e intrínsecas ligações fascistas. Durante as décadas seguintes, as forças políticas continuariam a marcar o festival, como em 1968 quando as festividades foram canceladas, ou em 2013 quando a grande vitória de A Vida de Adele aconteceu ao mesmo tempo que acesos protestos anti-LGBT por toda a França. Mesmo assim, é difícil não olhar com surpresa para os cineastas que aproveitam a exposição do festival não tanto para promover o seu trabalho como para um ato de manifestação política.

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Falamos disto pois, em maio do ano passado, Cannes viu marchar pelo seu exclusivo tapete vermelho um grupo de cineastas e atores de sinais em punho a alertar o mundo para como o impeachment de Dilma Roussef constituía um golpe de Estado ilegítimo. Podem estar a perguntar-se o que é que isto tem que ver com a Awards Season, mas foi precisamente a recusa dos cineastas em não se manterem apolíticos que matou as esperanças que o seu filme poderia ter de triunfar nos Óscares. Aquarius era o grande favorito da crítica e era quase garantidamente o projeto candidato do Brasil ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro. Só que, com uma mudança de regime, mudam-se as estruturas de poder e o comité de seleção também não se manteve apolítico. O resultado final de tudo isto foi que outra obra foi selecionada para representar o Brasil nos Óscares, o país acabou sem qualquer nomeação e Aquarius, um dos melhores filmes de 2016, foi ignorado na Awards Season.

aquarius sonia braga

Mas seria justo exigir aos cineastas, ou aos seus críticos, uma abordagem apolítica? Claro que não. Isso é perfeitamente absurdo, especialmente quando consideramos quão político é o filme em questão. Aquarius relata a história de Clara, uma crítica musical de grande renome que passou a vida a lutar contra o cancro da mama e a lutar pela democracia durante mais de duas décadas de um regime militar decidido a apagar opiniões como a sua. Agora, já com 65 anos e enviuvada, ela vive num apartamento no Recife e em toda a sua casa vivem memórias, cada peça de mobiliário é um artefacto da História de uma pessoa e de uma nação. No entanto, tal vivência idílica é posta em risco devido a um plano para tornar o bloco de apartamentos, chamado Aquarius, num condomínio de luxo. Sozinha, isolada pela sua teimosia e indignação, Clara entra numa odisseia de confrontos passivo-agressivos com a empresa decidida a expulsá-la do seu lar.

É absolutamente impossível negar o carácter político de tal narrativa e a execução formal de Kleber Mendonça Filho apenas salienta esses aspetos. Ao mesmo tempo, o cineasta tem a sensatez de não celebrar a grandiosidade da sua protagonista sem qualquer tipo de ambivalência ou distância crítica. Clara é uma figura que nos cativa de imediato, uma mulher que exige admiração devota pela sua simples graça e dignidade, mas a sua teimosia não é somente o gesto de uma heroína antirregime. É certo que as suas ações denotam uma fúria incendiária contra o tipo de neocapitalismo que ameaça o seu modo de vida, mas há também que considerar quão o seu privilégio socioeconómico lhe permite ser assim, Para os seus vizinhos, que apenas serão pagos pelas suas casas quando Clara capitular, a sua teimosia é um ato de egoísta vilania e o filme não nos apaga essa nuance ou outras referentes a várias relações familiares da protagonista.

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Aquarius é um filme de complexas ideias e ativismos políticos conflagrados numa história de resiliência estonteante que nunca almeja algo mais grandioso que a simples, mas poderosa, miniatura que é o retrato humano. Por consequência de tudo isto, Clara é uma das melhores e mais vibrantes personagens que o ano cinematográfico nos ofereceu e Kleber Mendonça Filho escolheu a melhor atriz imaginável para encarnar a sua criação. Falamos, pois claro, da incomparável Sônia Braga que tem em Clara a melhor prestação da sua longa e ilustre carreira. Quer seja na sua franca sensualidade, na sua desenvergonhada altivez intelectual ou na sua ocasional amargura melancólica, a Clara de Sônia Braga é um ser humano completo, palpável, que eletriza o ecrã e nos exige a abjeta atenção e dedicação enquanto espetadores.

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O modo como Braga está a terminar a Awards Season de mãos a abanar é um crime ainda maior que a igual falta de sorte do realizador e argumentista Kleber Mendonça Filho que, nesta sua segunda longa-metragem de ficção, se afirma como um dos mais interessantes e melhores cineastas do cinema brasileiro atual. Com um olhar de Braga, uma fala sussurrada e o entrecortar de uma memória que liga passado e presente através da materialidade de uma casa muito amada, Aquarius expressa mais ideias sobre História, responsabilidade política, legado emocional e integridade moral que a maior parte dos filmes que passaram pelas salas no último ano. Isto sim é cinema!

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Na próxima página terminamos esta listagem dos projetos que os Óscares esqueceram, e voltamo-nos a focar no trabalho de uma grandiosa atriz. Não percas!


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