As minhas fitas – Crónica de uma cinéfila
A cor é como um bocejo projetado sobre uma imagem insípida. Com ela, as formas exaltam-se e manifestam-se perante os olhos observadores. Por vezes, a integração das tonalidades com o brilho e os contornos suspende-nos numa dimensão de visionamento inconsciente que nos remete para um sentimento tão profundo que nos aprisiona nesta visão em túnel que nos habituámos a utilizar. E é precisamente aqui que surge a questão fundamental: quando todas as cores se reúnem, criando o branco, ou quando não existe sequer cor, alimentando o preto, perdemos parte da emoção das imagens e das situações?
As opiniões são divergentes mas é um facto que, nas mais diferentes formas de arte, encontramos obras-primas a preto e branco que nos esmagam como uma tela pigmentada e aí percebemos que o exato momento em que tudo se une marca o esboço de algo superior.
Não defendo a ausência de cor. Não. Defendo a ausência de preconceitos. Defendo a criação independente da formatação.
Revivamos um dos filmes mais marcantes do cinema: “12 Homens em Fúria” (12 Angry Men), que revi este mês em DVD. Retomando ao ano 1957, encontramos um cenário que acompanha todo o filme e 12 pessoas que, juntas numa única sala, decidem – na qualidade de jurados – se um adolescente deverá ser considerado inocente ou culpado de um homicídio. Basicamente é isto que contorna a história e que situa toda a narrativa. Sendo a preto e branco e com uma ação restrita, pensamos que, à partida, incorremos no erro de visionar uma película sem interesse. Pensamos que o sono pegará em nós como marionetas e que nos levará a uma outra história, criada em sonhos particulares e distantes desta realidade. E é aí que tropeçamos no real erro, quando ponderamos virar as costas a uma obra-prima como esta. Na verdade, esta é uma das provas de que é possível avivar um cenário, por si só, monótono, com uns brilhantes argumento e interpretação. Para ser perfeito, bastaria integrar alguma diversidade na escolha das personagens, já que todos os jurados são homens e brancos. Mas tudo isso converge para uma questão bem mais complexa e que estaria bem mais vincada na época em causa.
“12 Homens em Fúria”
Também em DVD, peguei numa outra criação de relevo, chamada “Casablanca”. Este filme assoberba-nos com os seus diálogos, muitos deles afamados e perpetuados até aos dias de hoje. Consigo facilmente compreender os motivos que levaram as pessoas a carregarem este filme consigo e a considerarem-no tão especial. Imagino os rostos cansados, num período de guerra, a assistirem a uma película que transmite precisamente aquilo que sentiam: a revolta e as dificuldades criadas pela Segunda Grande Guerra e os sentimentos de glória e de esperança que ainda assim é possível encontrar, mesmo em momentos de maior desespero. “Here’s looking at you, kid.”
“Casablanca”
Estando numa caminho sem cor, mas ainda assim entusiástico, escolhi mergulhar numa outra obra-prima cinematográfica, que nunca tinha abordado antes. “Os Sete Samurais” (Shichinin no samurai) transportou-me para 207 minutos de cultura japonesa, na qual imergiram rígidos padrões culturais. É facilmente notável a distinção entre os samurais e os aldeões e o respeito por um código de conduta vincado no que respeita a sua relação e convivência diária. Poderia entregar-me a estas páginas e prolongar-me pela descrição das várias personagens que, aliadas ao admirável trabalho de representação, sublinham a opulência deste filme. Todos os samurais possuem marcadas características que colidem entre si. Cada um deles é definido por traços específicos que o tornam singular e diferente de todos os outros. Na verdade, certos conflitos são despoletados precisamente pelo modo como cada um viveu, vive e pensa. Mas, à medida que o filme avança, apercebemo-nos que, independentemente disso, todos lutam como um só. A frase final desta película, aliada à imagem que a acompanha, confirma esta ideia e transforma toda a ação em algo que corre mais velozmente que a vontade de lutar. Não há dúvida que Akira Kurosawa sublimou este filme que, na minha opinião, esteve na base da inspiração de muitas obras posteriores. “Os Sete Samurais” é, sem dúvida, um dos melhores filmes japoneses jamais criados.
“Os Sete Samurais”
Terminarei esta crónica com uma fita que vi no cinema e que me permitiu comparar uma obra recente a preto e branco com os filmes atrás mencionados. “Nebraska” permite-nos reviver o real prazer da representação. Bruce Dern foi, para mim, a estrela desta fita. Incorporou, soberbamente, o corpo de um senhor cujas ações parecem ser incompreendidas. Este filme permite-nos sentir e, apesar de me ter satisfeito, não cumpriu a ideia de que a superioridade reside no novo, no recente e no evoluído.
“Nebraska”
Vamos regressar no tempo e ver, por momentos, o mundo a preto e branco?